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para não esquecer

Artigo | Não vivi mas lembro: notas sobre os 54 anos da invasão à UnB em agosto de 1968

"O passado é objeto de disputas do presente. Lembrar é resistir".

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Paulo E. C. Parucker - Foto: circa 1968; autoria desconhecida

No incerto dia em que um fotógrafo de rua registrou o autor dessas breves linhas, àquela altura um sorridente cavaleiro em seu destemido alazão, bem poderia estar acontecendo, simultaneamente, a invasão policial-militar de 29 de agosto de 1968 à Universidade de Brasília, que procedeu ao espancamento e prisão do líder estudantil Honestino Guimarães e de outros jovens insubmissos à ditadura. Se a foto não foi tirada naquele exato dia, dele não foi muito distante, para mais ou para menos.

O certo é que, como dá a ver tal imagem, e não sendo eu um dos presentes no palco daquele acontecimento histórico, não o “vivi” diretamente. Nem por isso deixo de lembrar desse momento e creio ser, agora, boa oportunidade para avançar umas breves reflexões em torno dele.

Em primeiro lugar, vale assinalar, aquela não foi a primeira invasão da UnB por forças repressivas.

Muitas ocorreram, a primeira das quais ainda em abril de 1964, e não se limitaram ao mês de agosto de 1968 (meses antes, junto com atos de protestos cidade afora, houve outra, em escala reduzida), sendo que as invasões policiais-militares de 1977 – por sua variedade, duração, quantidade de prisões e impacto no cenário nacional, entre outros critérios – ficaram também bastante marcadas na memória das lutas contra a ditadura.

Delas há múltiplas e, por vezes, detalhadas referências nos registros de pesquisa sistematizados no Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.O destaque, aqui, vai para a duradoura e intensa perseguição e repressão política movida contra opositores integrantes dos quadros discentes e docentes da UnB pelos vários governos ditatoriais, ao longo de mais de duas décadas.

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Em segundo lugar, devo observar que, não tendo vivido diretamente aquela agitada operação bélica contra estudantes armados apenas de palavras e ideias, trago comigo, não obstante, um conjunto de memórias de outros, esses sim, participantes diretos.

Tive a honra e o prazer de trabalhar na já citada comissão da verdade da UnB, que angariou um inestimável conjunto de depoimentos orais e escritos de uma gente corajosa e inquieta que, entre 1964 e 1988, “fez história”, como se diz.

Ademais, ao nos debruçarmos sobre parte da documentação oriunda dos órgãos de segurança da ditadura, hoje depositada na Coordenação Regional do Arquivo Nacional –COREG/AN, em Brasília, coletamos um sem-número de informações relevantes e descritivas das estruturas e ações repressivas da ditadura e das formas de resistência postas em prática pelos opositores, em geral qualificados pelos agentes como “perigosos subversivos”, tanto fazia se por distribuírem panfletos, por organizarem peças teatrais, por deixarem crescer o cabelo ou a indignação contra o autoritarismo.

Não ter participado diretamente dos fatos em torno daquele quente e seco 29 de agosto de 1968 na UnB não me autoriza a desconhecer que tais fatos ocorreram e que deixaram sua marca em nossa história.

Em terceiro lugar, cumpre apontar um aspecto nevrálgico que perpassa tanto nosso passado recente como nosso instável presente: o que nos aconteceu e o que fizemos do que nos aconteceu?

Refiro-me, aqui, à Justiça de Transição, conceito que, desde as décadas finais do séc. XX, tem ganhado corpo no mundo todo como o conjunto de experiências e procedimentos adotados por sociedades que passaram por severos traumas (tais como guerras civis, ditaduras militares etc.) para, enfrentando as chagas dessa violência (não raro, estatal), chegar a superá-las.

Não se trata do mero virar a página mas, sim, do processo transformador rumo a um padrão civilizacional pautado pelo respeito aos direitos humanos, designadamente o direito à verdade, à memória e à justiça.

Trata-se de assumir a urgente necessidade de erguer 4 pilares:

(I) a responsabilização judicial dos perpetradores de graves violações de direitos humanos;

(II) a reparação (material e simbólica) das vítimas diretas, de seus familiares e, por que não, da sociedade como um todo, no que ela tem de vítima de tamanhos traumas;

(III) o restabelecimento da verdade, a memorialização e a busca pelo diálogo social construtivo acerca do passado; e, por fim, mas não menos importante,

(IV) a transformação das instituições para a não-repetição. Embora ainda tenhamos longo caminho a percorrer nesse campo, algo já foi feito e seguimos verbalizando um claro e sonoro NUNCA MAIS.

Ao concluir essa curta jornada de memória, aponto um último aspecto que, especialmente nos dias que correm, não nos pode passar despercebido: a luta contra o negacionismo.

Por meio da negação da existência de graves violações de direitos humanos por parte do regime ditatorial – censura à imprensa, vigilância de cidadãos, sequestros e prisões não-judiciais de suspeitos, amplo recurso à tortura e ao extermínio de opositores, fraudes processuais e desinformações que asseguram o desaparecimento e a ocultação de cadáveres –, apoiadores do autoritarismo constroem uma versão “alternativa” à realidade histórica.

Longe de ser fruto de ignorância ou desconhecimento histórico, trata-se de uma narrativa mentirosa e mal-intencionada na qual o campo político de extrema-direita aparece como defensor de valores como liberdade e democracia, quando é precisamente o contrário que caracteriza suas práticas.

A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, em julgado de 15 de março de 2018, no caso ‘Herzog e Outros x Brasil’, assim entendeu: quanto ao “caráter sistemático ou generalizado dos fatos ocorridos e sua natureza discriminatória ou proibida, bem como à condição de civil das vítimas, a Corte igualmente considera provado que, no período em que ocorreram os fatos (...) opositores políticos da ditadura – e todos aqueles que, de alguma forma, eram por ela percebidos como seus inimigos – eram perseguidos, sequestrados, torturados e/ou mortos (...)”.

Às vezes, junto desse negacionismo, recorrem à chamada Teoria dos 2 Demônios, segundo a qual “os 2 lados” em disputa teriam cometido seus excessos (“guerra suja”) e que, por isso, não caberia senão superar esse passado e simplesmente seguir em frente.

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Contra a suposta equivalência, diga-se que, diferentemente dos milhares de opositores perseguidos, demitidos, presos, vitimados por violência psicológica, material e institucional, e mesmo centenas deles assassinados (milhares, se nesse cálculo incluirmos anônimos camponeses e povos indígenas que resistiam à perda de suas terras), não há um só agente da ditadura que, nessa condição, tenha seguido como réu o caminho judicial até o fim (quando muito, houve sentenças meramente declaratórias, como a que considerou torturador o militar Carlos Alberto Brilhante Ustra; porém, sem qualquer prisão por efeito de julgamento e condenação).

Não há comparação possível, igualmente, em relação à absoluta assimetria de forças então em conflito. Aliás, a própria utilização de recursos estatais (imensamente superiores em termos de orçamento, infraestrutura, materiais e agentes) para fins de tortura, assassinato e desaparecimento político é, em si mesmo, inadmissível.

Rememorar fatos como a invasão policial-militar à UnB em agosto de 1968, bem como a resistência posta em movimento contra a insanidade da ditadura, tudo isso é necessário. Esquecer não é opção. O passado é objeto de disputas do presente. Lembrar é resistir.

*Paulo Parucker, historiador, membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino