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Generalizar o movimento trans: um debate de classe

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"Não adianta falarmos em “valorização das vidas trans” sem associarmos a essa reivindicação o investimento em Saúde, Assistência, Educação e tantas outras políticas sociais fundamentais para uma vida digna" - Agência Brasil
Que nossa dissidência não se configure apenas em corpos e identidades, mas também na militância

Ao final de 2024, o ministro Haddad deu mais um espaço para consolidação de seu projeto de estrangulamento neoliberal para a economia brasileira. Nada surpreendente para quem já sabia que seu arcabouço fiscal, ainda mais doloso que o teto de Guedes/Bolsonaro, exigiria profundos cortes sociais para que a meta de déficit zero fosse alcançada. Haddad enviou ao Congresso um pacote de ataque frontal ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), do qual dependem pessoas com deficiência e idosos. E se essas pessoas ficam mais desamparadas, é claro que as mulheres de suas famílias terão ainda mais trabalho de cuidado jogado em suas costas. São, afinal, as que cuidam de quem precisa de cuidado e não o recebe do Estado. Mas a maldade proposta foi tão grande que nem o Congresso, de maioria direitista, deixou que passasse em sua integralidade. O BPC foi atacado, mas não tanto quanto queria Haddad e seus clientes da Faria Lima.

O pacote neoliberal do Governo Lula III também atacou a política de valorização do salário mínimo, retrocesso que infelizmente foi aprovado (e que impacta os benefícios baseados nesse valor). Houve ataque também ao abono salarial, que progressivamente diminuirá até que seja acessado somente por quem recebe um salário mínimo e meio. E nem assim o “mercado” se deu por satisfeito.

Mas o que isso tudo tem a ver com a política trans? Responder a essa questão é o desafio histórico da esquerda coerente aos movimentos sociais que representam grupos subalternizados (compostos majoritariamente por pessoas da classe trabalhadora, mas historicamente escanteadas pelas organizações de esquerda). Apenas fazendo entender a relação de política geral com política específica é que se pode combater a sedução liberal dirigida a esses movimentos.

Não adianta pedirmos “visibilidade” trans quando os ataques a todo o conjunto da classe trabalhadora fazem com que se distancie ainda mais o vislumbre de que os 90% de nós tenhamos outras possibilidades de obtenção de renda que não a prostituição compulsória. Não adianta falarmos em “valorização das vidas trans” sem associarmos a essa reivindicação o investimento em Saúde, Assistência, Educação e tantas outras políticas sociais fundamentais para uma vida digna. E não nos enganemos: as metas do arcabouço fiscal exigirão ataques diretos aos pisos da Saúde e da Educação. 

Para 2025, o orçamento para a pasta LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos foi reduzido em 22,6%. De ínfimo, passou a ser risível. Qual então nossa esperança de que o PAES Pop Trans, desenvolvido pelo Ministério da Saúde para atualizar o “Processo Transexualizador” (e substituir esse nome horrível) e que prevê mais investimentos para a saúde especializada à nossa população, seja aprovado por Lula?

Ora, Lula cedeu até ao layout transfóbico da nova Carteira de Identificação Nacional (CIN), mesmo quando nos havia prometido mudá-lo. O layout proposto pelo Governo Bolsonaro já está sendo implementado pelo Governo Lula. A pressão da bancada fundamentalista religiosa foi bem maior que o compromisso do presidente com quem se coloca na luta de frente da luta antifascista. E se ele não assumiu esse compromisso pela mera mudança no formato da CIN, uma coisa “boba” aos olhos de quem não sofre transfobia e não sabe o que é ter sua privacidade exposta num documento de uso cotidiano… O que se dirá dele enfrentar o fundamentalismo neopentecostal para avançar na saúde especializada às pessoas trans?

Infelizmente o movimento trans permanece rendido à pressão da esquerda tradicional, a mesma que o despreza, e que diz que criticar o projeto neoliberal seguido pelo Governo Lula seria fortalecer um retorno da extrema direita ao Palácio do Planalto. Por isso não avançam em suas reivindicações e nem em sua consciência de classe. Por isso, é débil no enfrentamento ao identitarismo o qual a mesma esquerda tradicional se utiliza para desprezá-lo.

Baixar a cabeça para os ataques neoliberais do Lula III na esperança de que as coisas fiquem menos piores é uma corrida para o abismo. A extrema direita e a direita, representantes do latifúndio, do mercado financeiro e do fundamentalismo religioso, deviam ser combatidas justamente para que perdessem sua força. Em 2024 esses setores e seus representantes já mostraram que o cenário atual lhes é favorável, justamente por que não morrerão de velhos: precisam ser derrotados! Sigamos João Pedro Stédile e demais figuras da luta combativa: digamos estamos “putas” com o Governo! Não é só na esquina, afinal, que nossos 90% deveriam estar emputecidos!

Que possamos avançar no combate à domesticação do movimento por parte da esquerda tradicional, vetor fundamental para que ele seja seduzido por ideais liberais e individualistas. Que nossa dissidência não se configure apenas em nossos corpos e identidades, mas também no horizonte de nossa militância!

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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Rafaela Ferreira