A existência e manutenção de manicômios por si só impede a criação de serviços substitutivos
Sempre que falamos na urgência de se fechar o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), o manicômio (público e ilegal) do Distrito Federal (DF), muitas pessoas perguntam se não se deve ampliar e fortalecer a RAPS do DF antes de fechá-lo. Para respondê-las, dialogamos com algumas reflexões históricas da experiência de desinstitucionalização italiana, sobretudo o fechamento do manicômio em Trieste, coordenada por Franco Basaglia.
A experiência basagliana não foi a única desenvolvida em solo italiano. Por mais que Basaglia tenha sido o principal nome das experiências de crítica e transformação das formas de se conceber e abordar a loucura na Itália, na contramão da psiquiatria tradicional e suas instituições asilares-manicomiais, ele não era o único, muito menos estes processos foram homogêneos, havendo, por vezes, contradições, discordâncias e disputas. Para alguns atores do Movimento Anti-institucional, como Edelweiss Cotti que coordenou a experiência em Cividale, os Basaglia eram reformistas, pouco ou nada radicais.
Em outros casos, como o de Reggio Emilia, a experiência foi na contramão da basagliana ao privilegiar “o momento externo sem a desmontagem direta do manicômio, esperando seu enfraquecimento como consequência do fortalecimento dos serviços territoriais” (Barros, 1994, p. 63). Contudo, com a permanência do manicômio, ele continuou “atraindo” parte significativa dos casos, inibindo a criação de serviços substitutivos ou com estes, quando criados, em números insuficientes, orbitando em torno do hospital psiquiátrico, a partir da hegemonia asilar-manicomial, e com uma responsabilização que não condizia com as condições concretas da própria realidade.
A nosso ver, a não previsão de fechamento dos manicômios como um todo no Brasil, faz com que nossa experiência tenha algumas similaridades com a de Reggio Emilia - resguardadas as particularidades e as abissais diferenças de proporção - e não com a de Basaglia em Trieste. Com isso, acabamos compartilhando também o seu principal limite: a manutenção do manicômio. Enquanto o manicômio estiver de pé, os outros serviços, mesmo aqueles que devem funcionar de maneira territorial-comunitária, continuarão a operar no circuito psiquiátrico e manicomial, a partir da centralidade do hospital psiquiátrico.
A existência e manutenção de manicômios por si só impede ou atrapalha a criação de outros serviços substitutivos ao manicômio, enfraquece aqueles existentes e qualquer processo de construção e/ou fortalecimento de uma rede territorial-comunitária. A construção de uma rede substitutiva que não passe pelo fechamento do hospital psiquiátrico já estará obstaculizada, tolhida desde o início. A expansão e o fortalecimento dos cuidados em rede, de base territorial-comunitária, implicam o fechamento dos manicômios, e não o contrário.
Este caso fica como lição para quem “argumenta” que é preciso ampliar os serviços substitutivos da RAPS para fechar os manicômios, utilizando isso, na verdade, como uma muleta ad eternum para não fechar os manicômios.
Damos o exemplo brasileiro que também corrobora isso, o do Distrito Federal (DF). Desde 1995, há no DF uma Lei, a nº 975, que colocou um prazo de quatro anos para o fechamento do Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo (HSVP), algo que não aconteceu.
Um dos argumentos mais utilizados contra o fechamento do HSVP é justamente que a rede substitutiva do DF é bastante precária - o que é verdade -, e que ela deveria ser fortalecida e ampliada a ponto de o HSVP não ser mais necessário, podendo então ser fechado. Essa justificativa é dada até os dias de hoje. Nisso, chegamos ao final de 2024, quando se completaram 29 anos da Lei 975/1995 e 25 do prazo que ela deu para o fechamento do HSVP. Durante todas essas duas décadas e meia, o HSVP vem funcionando como um manicômio público e ilegal.
E em todo esse tempo, se “argumenta” que a precariedade da rede faz do HSVP necessário, sem se questionar que um dos motivos da RAPS do DF ser insuficiente é a permanência do HSVP. Ele é um dos principais obstáculos para o fortalecimento e a ampliação da rede. Ao contrário do que se argumenta, de que se deve fortalecer a rede para fechar o HSVP, temos um exemplo nítido do contrário: o não fechamento do hospital psiquiátrico, ou seja, a sua manutenção, contribuiu - e contribui - para que a RAPS do DF seja uma das piores de todas as 27 unidades federativas do país (Desinstitute, 2021). Em suma, não se fechou o manicômio e a sua manutenção “preveniu” a construção e o fortalecimento da rede substitutiva.
No plano econômico, essa argumentação é muito parecida - é uma homologia, na verdade - com aquelas que dizem ser necessário fazer crescer o bolo (a riqueza socialmente produzida) primeiro para depois distribuí-lo. O que temos tido em nosso país historicamente é um bolo cada vez mais volumoso e concentrado nos pratos e barrigas de poucos, com o restante - que produz o bolo - a ver, no máximo, alguns de seus farelos, sendo postos a lutar entre si por algumas das migalhas.
Pelo fechamento imediato do HSVP!
Pelo fortalecimento da RAPS no DF!
Pelo fim dos manicômios!
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Rafaela Ferreira