Distrito Federal

racismo em números

Religiões de matriz africana são principais vítimas de intolerância religiosa no DF

Das 42 ocorrências registradas de janeiro a outubro de 2024, 20 foram praticadas contra religiões afro-brasileiras

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Dos 42 crimes de intolerância religiosa registrados no DF de janeiro a outubro deste ano, 20 foram cometidos contra religiões afro-brasileiras - FUNDARPE

Quase metade dos crimes de intolerância religiosa registrados no Distrito Federal entre janeiro e outubro deste ano foram cometidos contra religiões de matriz africana. No mesmo período, uma média de dois casos (1,91) de injúria racial foram denunciados por dia no DF. 

Os dados da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF), obtidos pelo Brasil de Fato DF por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), demonstram que, enquanto um deputado distrital ligado à direita tenta atacar e desqualificar o ensino da história e cultura afro-brasileira na rede pública de ensino, o racismo segue fazendo inúmeras vítimas na capital federal.

“A média de quase dois casos de injúria racial por dia no DF reflete a persistência de práticas discriminatórias enraizadas em nossa sociedade. Esses números indicam que o racismo, embora muitas vezes velado, continua sendo uma realidade enfrentada diariamente por muitas pessoas”, avalia a advogada e membra da Comissão de Igualdade Racial da Ordem de Advogados do Brasil do DF (OAB-DF), Patrícia Guimarães. 

No total, de janeiro a outubro de 2024, a polícia do DF recebeu 42 denúncias de intolerância religiosa. Em 18 casos, o boletim de ocorrência não especifica contra qual religião o crime foi praticado. Das 24 ocorrências em que essa especificação acontece, 20 mencionam religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, e quatro a religião cristã.

De acordo com a advogada, a discriminação contra as religiões afro-brasileiras é reflexo do racismo estrutural. 

“Esse preconceito é alimentado por uma combinação de fatores, como a demonização dessas práticas por outras religiões, a falta de conhecimento sobre suas tradições e a associação racista com a população negra. Além disso, essas religiões têm menor proteção social e política, o que torna seus praticantes mais vulneráveis a ataques e discriminação. O combate a esse crime exige um esforço conjunto de promoção do respeito à diversidade religiosa e ações educativas para desconstruir preconceitos”, defende.

Para a mãe de santo e integrante do Coletivo Mulheres do Axé do DF e Entorno, Christine Bastos (Mam'etu Zaze Leuacy), há uma subnotificação dos casos de intolerância religiosa. 

Apesar de elogiar a atuação da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa (Decrin), Bastos aponta que ainda há muita falta de conhecimento por parte dos agentes públicos que atendem as denúncias, bem como das vítimas. 

“A intolerância religiosa atinge mais as comunidades de matriz africana por conta do nosso pano de cabeça, do fio de contas, das nossas vestes”, destaca. “Nós não estamos aqui para impor ou dizer o que é o certo, mas nós exigimos respeito”, afirma a mãe de santo.

Enquanto escolas do DF dão aula de como concretizar a legislação nacional que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas instituições de ensino, o deputado distrital Pastor Daniel de Castro (PP) vai na direção contrária.

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Em vídeo publicado em uma rede social do parlamentar em outubro deste ano, Castro expõe e ataca uma professora do Centro Educacional do Lago Sul (CEL), alegando  que a docente estava obrigando estudantes a realizar “rituais”, praticar “magia” e cultuar entidades de religiões de matriz africana. O deputado afirma ainda que denunciou o caso ao Ministério Público do DF (MPDFT), à Secretaria de Educação e à Regional de Ensino. 

O MPDFT, no entanto, decidiu denunciar Daniel de Castro à Justiça por disseminar e reforçar o “falso estereótipo de que as religiões de matrizes africanas estão associadas a algo ruim, mal e perigoso”. Na ação civil pública, os promotores pedem que o deputado se retrate publicamente, peça desculpas à professora e seja obrigado a participar de curso de letramento racial. O órgão solicita ainda que o parlamentar pague uma multa de dano moral coletivo no valor de R$ 100 mil.

Injúria, discriminação e racismo 

Os dados da SSP-DF obtidos pela reportagem apontam ainda que foram registradas 584 ocorrências de injúria racial no DF, entre janeiro e outubro de 2024. Isso significa uma média de aproximadamente dois casos (1,91) por dia. A maioria (85 casos) aconteceu em Brasília, seguido por Ceilândia (65 casos) e Taguatinga (44 casos).

Além disso, no mesmo período, foram recebidas 37 denúncias de discriminação racial e 32 de racismo em todo o DF. O Brasil de Fato DF conversou com a advogada Patrícia Guimarães para entender as diferenças entre cada tipo de crime racial.

Para a especialista, a disparidade nos números das denúncias reflete tanto uma “falta de clareza da população” em relação aos conceitos, quanto a dificuldade de denúncia e apuração, especialmente em crimes que não envolvem uma vítima individual, como o racismo. 

De acordo com a legislação, a injúria racial é caracterizada pela ofensa à dignidade ou ao decoro de uma pessoa, a partir de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem da vítima. “Por ser direcionada a uma pessoa específica, é comum e muitas vezes ocorre em situações cotidianas”, detalha a advogada. 

Já a discriminação racial, segundo Guimarães, envolve atitudes que dificultam ou impedem o acesso de grupos raciais a serviços, empregos ou espaços em razão da cor da pele ou origem étnica. “Esse tipo de crime tem menor registro porque é menos visível e mais difícil de ser provado”, avalia. 

Por fim, o crime de racismo está relacionado a condutas que impedem ou restringem o acesso a direitos a todo um grupo racial, a exemplo do que acontece com políticas de exclusão ou segregação racial. De acordo com a membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-DF, por atingir um grupo ou coletivo, a denúncia do crime de racismo exige “mais estrutura probatória” e, por vezes, um “entendimento técnico maior sobre sua configuração legal”. 

Em janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou uma lei que equipara em gravidade e pena os crimes de racismo e injúria racial

Desde então, a injúria racial também passou a ser considerada um crime imprescritível – podendo ser julgado a qualquer tempo, independente de quando a ofensa aconteceu – e inafiançável – o agressor não pode responder o processo em liberdade mediante pagamento de fiança. Além disso, os dois delitos passaram a ter a mesma pena, que pode ser de dois a cinco anos de reclusão.

Por que e como denunciar?

Para além da responsabilização dos autores e da proteção das vítimas, denunciar crimes raciais é essencial para levantar estatísticas que permitam o dimensionamento dos conflitos raciais no país e amparem a tomada de decisão do poder público na promoção de ações e políticas de combate ao racismo. 

“Além de assegurar que os responsáveis sejam punidos, a denúncia contribui para a construção de uma sociedade mais igualitária e para a redução de comportamentos discriminatórios. Também é uma forma de dar visibilidade à questão, incentivando o poder público e a sociedade a adotar políticas e práticas mais inclusivas. O silêncio perpetua o racismo e a intolerância; a denúncia, por outro lado, é um ato de resistência e busca por justiça”, defende a advogada Patrícia Guimarães. 

O DF conta com uma unidade policial especializada para atender aos crimes motivados por intolerância – a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa (Decrin), da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF).

A denúncia pode ser feita presencialmente em qualquer delegacia, 24 horas por dia, ou na Decrin, que funciona de segunda a sexta-feira, das 12h às 19h, no Departamento de Polícia Especializada (DPE), próximo ao Parque da Cidade. Outros canais disponíveis são o telefone 197 / Opção zero, o e-mail [email protected] e o WhatsApp (61) 98626-1197.

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Edição: Flávia Quirino