Vivemos em uma realidade que é contada de maneira invertida. No DF, vivemo isso cotidianamente
Vivemos, de fato, em uma realidade que, por vezes, é contada de maneira invertida. No Distrito Federal (DF), vemos isso cotidianamente, especialmente com o atual Governo do Distrito Federal (GDF). Citamos como exemplo a recente repressão contra trabalhadoras/es do Eixão do Lazer. Inclusive, este caso ganhou notoriedade porque ocorreu no Plano Piloto, porque ações violentas, repressivas do GDF contra a população periférica acontecem todos os dias, sem que ganhem visibilidade.
Na saúde mental, essa inversão da realidade já vem de muito tempo, mas também tem sido intensificada. Citamos o caso mais emblemático, que é a manutenção do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), um manicômio público e ilegal, cuja permanência contribui para que as políticas de saúde mental e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do DF tenham alguns dos piores indicadores de todo o Brasil. Por exemplo: o número extremamente insuficiente de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e sua cobertura populacional precária; a inexistência até este ano de Residências Terapêuticas (RTs), com a recente construção de duas RTs, mas que ainda são muito poucas; a existência de só uma Unidade de Acolhimento (UA); a péssima cobertura de Atenção Básica, entre inúmeros outros problemas.
Governo Federal aumenta manicomialização no DF e enfraquece a reforma psiquiátrica
Acabou de ser lançado pelo Mecanismo de Prevenção e Combate a Tortura (MNPCT) o “Relatório de Inspeções no DF e Entorno”, que trata das fiscalizações realizadas na Comunidade Terapêutica Salve a Si/Instituto Eu Sou e no HSVP. O relatório é unívoco em recomendar o fechamento do HSVP, com uma série de medidas que auxiliem no fortalecimento da RAPS do DF.
“Em relação ao Hospital São Vicente de Paulo, o relatório aponta a violação de diversos pontos da Lei da Reforma Psiquiátrica que permitem caracterizá-lo como uma instituição asilar e foram feitas recomendações para o fechamento da unidade e ampliação dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial no DF. Dentre as violações, destacam-se a não elaboração de projetos terapêuticos singulares, o uso abusivo de contenções mecânicas como prática disciplinar, o impedimento de acesso a meios de informação e comunicação, internações prolongadas e a cronificação de usuários."
"Foram feitas 16 recomendações às autoridades para o fechamento definitivo do Hospital por meio ações planejadas em articulação com os serviços da rede de saúde e assistência social do território e em diálogo com os trabalhadores e usuários da RAPS e com a sociedade civil organizada atuante na pauta antimanicomial”.
Reproduzimos ainda a fala da coordenadora do MNPCT sobre o HSVP e os impactos deletérios da sua manutenção para a saúde mental do DF:
“A gente não vai esperar a rede do DF se expandir para fechar o Hospital São Vicente de Paulo, é o fechamento dele que vai levar a ampliação da rede” [...] “Enquanto o hospital estiver aberto, os serviços de saúde mental continuam funcionando em uma lógica manicomial e com a centralidade de um hospital psiquiátrico”
Especialistas recomendam fechamento de comunidade terapêutica e hospital psiquiátrico no DF
Na contramão disso tudo, invertendo a realidade, nos deparamos com a publicação da última terça-feira (3), com a seguinte videorreportagem: “DF2 teve acesso às instalações do único hospital psiquiátrico público do DF”.
Comecemos pelo próprio título da videorreportagem sobre o HSVP. Ora, em vez de se ter vergonha da existência de um hospital psiquiátrico em pleno 2024, o título e o conteúdo da reportagem vão na direção contrária. Para piorar, é importante ressaltar, mais uma vez: não baste o HSVP funcionar como manicômio, ele ainda por cima é público e ilegal, desrespeitando a Lei Distrital nª 975, de 1995; a Lei n.º 10.216, de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica; a Portaria n.º 3.088 do Ministério da Saúde, que institui a RAPS e não possui hospitais psiquiátricos na sua composição, mas serviços que visam substituí-lo.
Na matéria, são pronunciados números de atendimento, na casa dos milhares, os quais podem ser rebatidos não só quantitativamente, mas qualitativamente: estes números, que, na verdade, são pessoas, não poderiam ou deveriam estar sendo atendidas por serviços substitutivos da RAPS, ao invés de um hospital psiquiátrico? Mesmo os casos de internação, elas não deveriam ser feitas em Hospitais Gerais, e outros serviços, não manicomiais, como é o HSVP? Não seria a existência do HSVP um impeditivo a isso?
A reportagem também entrevistou uma das diretoras do HSVP que dá a entender que o problema do HSVP é a insuficiência de profissionais, e não que se trata de um serviço asilar-manicomial. Ora, um manicômio com mais trabalhadores(as) continua sendo um manicômio. Inclusive, boa parte das atividades que aparecem na reportagem são desmentidas ou confrontadas pelo relatório recém-publicado do MNPCT que, cabe ressaltar, se pautou não somente na observação, mas em entrevistas com profissionais do HSVP e em documentos do próprio serviço.
Um dos casos mais pronunciados do Relatório foi a observação de uma contenção mecânica feita de maneira irregular, desrespeitando as normativas próprias sobre contenção. A realidade concreta, e não a invertida, demonstra, então, que estas e outras práticas não são anomalias no HSVP. E não são anomalias justamente por se tratarem de um serviço manicomial, mesmo que haja boas-intencionalidades e esforços diferentes por parte da gestão e profissionais. O relatório apresenta, portanto, uma realidade sem maquiagens ou inversões - para reportagens, inclusive.
Também na contramão da realidade invertida apresentada pelo HSVP na matéria, por meio de entrevista com uma pessoa internada no HSVP, o relatório de inspeção destaca: “'Comer, dormir, tomar banho e tomar remédio'. Assim, uma usuária sintetizou para a equipe de inspeção sua rotina na unidade”.
Acreditamos não ser um acaso que tal matéria seja veiculada logo após o lançamento do Relatório e com o avançar do Grupo de Trabalho criado pela Diretoria de Serviços de Saúde Mental (DISSAM), e visa apresentar um plano de fechamento do HSVP e de todos os leitos psiquiátricos do DF. Apenas ressaltamos que se já era urgente o fechamento do HSVP em 1999, o prazo da Lei 975/1995, não temos adjetivos suficientes para caracterizar a gravidade que significa o seu funcionamento ainda em 2024, e nem para qualificar a necessidade de seu fechamento.
A partir disso, indagamos: a proposta, então, é que se fortaleça tal manicômio? Quem defende a manutenção do HSVP está defendendo que o GDF continue não só a cometer violência com pessoas ao manicomializá-la no HSVP, mas cometer ilegalidades, ao descumprir as leis? Ou pior, a saída é termos mais manicômios no DF?
Considerando tudo isso, finalizamos este texto sugerindo algumas alterações no título da matéria, tornando-a mais condizente com a realidade:
Todo dia temos acesso às instalações do hospital psiquiátrico público e ilegal que o GDF ainda teima em manter funcionando. Até quando o GDF irá chancelar essa violência e ilegalidade?
Pelo fechamento do HSVP!
Pelo fortalecimento dos serviços substitutivos da RAPS!
Pelo fim de todos os manicômios!
*Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (SMM-DF) é um grupo vinculado ao Instituto de Psicologia da UnB, que visa potencializar a militância no campo da saúde mental.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Rafaela Ferreira