De Jesus, pegaram o amor ao próximo, o perdão, o “dar a outra face” e usaram para colonizar
Não faz muito tempo comprei um livro infantil “o Capital para crianças”, um livro de Joan R. Riera, uma versão infantil de “O Capital”, do filósofo alemão Karl Marx, publicado em 1867. Comprei para uma criança querida, filha de pais que pensam diferente de mim em relação a tantas coisas, que é preciso um esforço para encontrar um assunto.
Falhei.
Comprei e avisei que comprei. Eu queria ser honesta com aquela família cristã. Não falar de religião, não falar de política, não tocar em temas sensíveis e, ao mesmo tempo, ser a comunidade de uma criança mostrando a minha visão de mundo pra ela.
As cores, os bichos e as letras ela aprende na escola. Eu jogo capoeira com ele e a gente aprende juntes - sim, às vezes eu escrevo em gênero neutro porque a língua evolui de acordo com as necessidades de sus falantes, e vosmecê sabe bem que a atualização da gramática sempre chega depois, não se faça de doida.
Muites de vocês, leitores, estão tentando entender o que o título do presente texto tem a ver com “O Capital” ou com o comunismo. E, apesar de parecerem assuntos distantes, estão altamente conectados.
- Vou ter que inspecionar esse livro aí, não quero saber dos seus comunismos.
- Claro! O livro nem fala de comunismo, é sobre o capitalismo mesmo, sociedade e tal.
No dia seguinte o casal já tinha encontrado o livro em pdf na internet, me disse que não tinha nada demais, mas que são de direita e que era melhor encontrar assuntos neutros.
No livro infantil que comprei, o vovô Marx conta a história do trabalhador de uma fábrica de meias que trabalhava 12h por dia e ganhava $ 0,25 por par de meia. Quando ele vai na loja comprar, as mesmas meias custam $ 2. Ele fica indignado. Sua amiga calcula o custo da produção da meia, inclui a comissão do vendedor e conclui que o dono da fábrica ganha $ 1,35 por par de meia. Os trabalhadores entram em greve pedindo menos horas de trabalho e melhores salários, o patrão concorda e os trabalhadores ficam felizes.
É assim que o capitalismo funciona. Isso não é política, é história, é sociedade. E onde Jesus entra nisso? Exatamente! Jesus. O lance é que o fantasma do comunismo é tipo um 'três em um' com mais o bicho papão e a cuca, assustando cristãs, cristãos e cristães mais do que todos os sete cavaleiros do Apocalipse.
Isso sempre me impressiona… Pessoas letradas que nunca leram um livro sobre o assunto, nunca jogaram no Google a palavra “comunismo” têm certeza que o governo vai mandar uma família morar na sua casa com você.
- Mas na China é assim! As pessoas não são livres!
Ok. Mas mesmo querendo distância do vovozinho alemão ou querendo tacar pedra no regime comunista, a verdade é que um homem que disse ao jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres” (Mateus 19:21), não acreditava em lucro não. Pedro e Tiago eram pescadores, Jesus era carpinteiro. Quem inventou a profissão de padre/ bispo/ pastor, foi o cristianismo que simplesmente ignorou que Jesus era a novidade que, com seus ensinamentos, tornava ultrapassado tudo antes dele, mesmo que muita gente ainda prefira o velho:
“Ninguém tira um pedaço de uma roupa nova para a coser em roupa velha, pois romperá a nova e o remendo não condiz com a velha. E ninguém deita vinho novo em odres velhos; de outra sorte o vinho novo romperá os odres, e entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão; Mas o vinho novo deve deitar-se em odres novos, e ambos juntamente se conservarão. E ninguém tendo bebido o velho quer logo o novo, porque diz: Melhor é o velho”. Lucas 5:36-9.
:: Opinião | Jesus é negro e revolucionário ::
De Jesus, pegaram o amor ao próximo, o perdão, o “dar a outra face” (Lucas 6:29) e usaram para colonizar continentes.
O que é uma ideia genial! Apenas desumana, mas quem se importa, não é mesmo? O importante é lucrar! Das pessoas, pegaram a fé e usaram para impedir a vingança pela escravidão e de tudo o que surgiu com ela.
Em nome de Jesus, que só pregou o amor, exércitos foram criados, mulheres incendiadas, terreiros completamente destruídos, travestis assassinadas e muito, muito, muito mais.
Jesus não era cristão. O cristianismo surgiu depois dele e se casou com o capitalismo no século XV, quando o papa Nicolau V e o rei Afonso V de Portugal, uniram forças resultando em duas bulas papais: a Domus Diversas (1452) e a Romanus Pontifex (1455):
“(...) outorgamos por estes documentos presentes, com a nossa Autoridade Apostólica, permissão plena e livre para invadir, buscar, capturar e subjugar sarracenos e pagãos e outros infiéis e inimigos de Cristo onde quer que se encontrem, assim como os seus reinos, ducados, condados, principados, e outros bens [...] e para reduzir as suas pessoas à escravidão perpétua.” - Domos Diversas.
“Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou colectividade, infringir essas determinações, seja excomungado.” - Romanus Pontifex
Jesus encontrava pessoas que não seguiam o judaísmo e as curava, alimentava, nutria a alma. Os colonizadores encontravam os não cristãos e transformavam em propriedade.
E, se a gente pensar direitinho, dada a opção ‘se convertam ao cristianismo ou sejam escravizades pra sempre’, muita gente se batizou no mesmo instante. No entanto, você que conhece, ou que ao menos já viu o racismo de perto, acha mesmo que todo mundo que se converteu foi tratado como igual?
Mas Nai, isso não é o cristianismo, isso é a Igreja Católica!
Então, quando eu era adolescente eu viajei com meus tios e a minha priminha não tomava água de jeito nenhum. O pediatra disse para colocar água no suco, no refri, no chá e deixar tudo bem aguado. Um dia, em um restaurante, ela flagrou a operação e deu um show. Meu tio pegou outro copo, derramou um pouco do refrigerante aguado e disse:
- Pronto! Papai tirou a água!
E, assim como a água não saiu do refrigerante, mesmo que minha prima tenha acreditado, o catolicismo é a matéria prima do cristianismo! Não tem como tirar. Outra cor, outro sabor, até outra textura mas a base, o refrigerante, continua ali.
Martinho Lutero (1483-1546) era um monge alemão católico quando pegou a bíblia católica e fundou sua própria igreja: Luterana. Inclusive ele levava muito a sério a ideia de que a salvação é concedida exclusivamente pela fé em Jesus - mesmo que um dos apóstolos originais de Jesus tenha dito que “a fé sem obras é morta” Tiago 2:17.
Também o rei Henrique VIII da Inglaterra (1491-1547) tendo se desentendido com o papa Clemente VII por querer se divorciar de Catarina Parr, adorou a ideia de Lutero, e também fundou sua própria igreja, a Anglicana, atraindo quem também queria se divorciar. A partir daí, a porteira estava aberta para quem quisesse pegar a bíblia, mudar uma coisinha aqui, outra ali e lançar sua própria tendência cristã.
Em 2018, quando a maioria absoluta dos pastores evangélicos se movimentaram para eleger Jair Messias Bolsonaro para a Presidência do Brasil, eu achei que era piada pronta: “Então, se alguém vos disser: Eis que o Cristo está aqui, ou ali, não lhe deis crédito; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas” (Mateus 24:23-4) e falsos messias. Mas era verdade, e centenas de milhares de cristães ouviram ele minimizar abertamente os efeitos de uma doença tão grave que fez parar o mundo inteiro e ainda assim repetiram e ainda repetem ser ele um homem de Deus.
Jesus curava as pessoas e dizia “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus 11:28). Jair Bolsonaro disse: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (portaria do palácio da Alvorada, 28/04/2020, início da pandemia de COVID-19) ou “Eu não sou coveiro, tá certo?” (Coletiva de imprensa em 20/04/2020).
Jesus quebrou as mesas e cadeiras dos mercadores que faziam feira no templo (Mateus 21:12) mas os comerciantes da fé ainda hoje se aproveitam do amor que milhões de pessoas ao redor do mundo têm por Jesus.
E aí eu te faço uma pergunta honesta: quando você vai à sua igreja, o foco está em Jesus? Ou está nos santos, no dízimo, na família? Ou talvez em profetas e histórias modernas?
Porque assim, se você acredita que Jesus é o filho de Deus que desceu dos céus para pagar pelos pecados da humanidade, se você acredita que ele te conhece profundamente e é seu salvador pessoal, só ele importa. O que ele fez, o que ele disse e, se estamos sendo honestas, a verdade é que o nome deste artigo deveria ser 'Jesus é comunista'. Mas, se fosse, você teria chegado até aqui?
O vovozinho alemão nasceu muito depois de Jesus e, se os países comunistas não são um paraíso, se estão falhando em promover uma política de valorização da vida e da liberdade, é porque gritaram Terra, Fogo, Vento, Água e não entendem porque o Capitão Planeta não apareceu. Desculpe a referência dos anos 90, mas é que sem o 5º elemento, não tem como acionar nenhum super poder. Você se lembra qual é? Talvez você seja jovem demais pra saber a importância do Coração. Mas em qualquer lugar, a humanidade é gananciosa, sem coração, que nem o capitalismo.
E, mesmo que hoje em dia eu não acredite mais nessa história de filho de Deus, de pagador de pecado - até porque o próprio conceito de pecado foi definhando na importância que eu dou -, eu amo Jesus pelo grande revolucionário que ele foi: pobre, subversivo, um gênio do amor.
E sem amor, eu não acredito que exista uma revolução satisfatória. E não é “sem Jesus”, tô falando sem AMOR mesmo. Porque foi isso que ele ensinou.
Quer ver? A igreja Mórmon é cristã e estabeleceu um tipo de comunismo bem radical no início, lá nos Estados Unidos do século XIX, mas não deu certo. O plano é esperar Jesus voltar para reestabelecer esse comunismo radical conhecido como “lei da consagração”. Mesmo assim, tem muito mórmon bolsonarista por aí dizendo que comunista come criancinha. Vai vendo…
Por fim, você pode escolher refletir ou ignorar o conteúdo deste texto, mas é inegável que muitos padres, pastores, bispos etc. enriqueceram roubando o dinheiro do dízimo, pago com fé pelas pessoas.
Você já viu, eu já vi, todo mundo que é, ou já foi de igreja já viu. E, no entanto, a fé de muitas dessas pessoas em Jesus, permaneceu sólida.
Meu convite pra você, leitore, é de não permitir nunca mais que o capitalismo, a corrupção e as convenções cruéis e mesquinhas de séculos passados lucrem com a sua fé: Pega seu dízimo - aqueles 10% que você dá todo mês pra igreja - e faz o que Jesus mandou o jovem rico fazer: “dá-o aos pobres”. Distribui na rua mesmo, pra pessoa trabalhando no semáforo, pro motoboy que trouxe sua comida ou pedindo ajuda na porta do mercado, catando lixo, como achar melhor.
Jesus não julgava ninguém e nem a gente devia.
Já pensou se as pessoas, só as que se dizem cristãs, pagassem dízimo nas ruas? Muita coisa ia ser diferente. Inclusive a gente mesmo, enquanto povo, enquanto sociedade, estaríamos muito mais unides e focades no bem maior: acessar as grandes fortunas, distribuir impérios de dinheiro sujo da escravidão negra e indígena para todes es trabalhadores seguindo o lema: trabalhar menos, trabalhar todes, produzir o necessário, redistribuir tudo.
A propaganda da direita é que vai todo mundo ser pobre, mas é só porque enganaram a classe média fazendo ela realmente achar que tá no meio de alguma coisa, e não é bem assim: quem precisa trabalhar pra viver tá longe de ser rico, você pode ter um salário de R$ 200mil mas, se depende desse dinheiro para viver, como dizem por aí, você é só um “pobre premium”.
Um relatório de janeiro de 2024 da organização Oxfam Brasil diz que a pessoa mais rica do país tem a mesma quantidade de dinheiro que a metade mais pobre do país: 107 milhões de pessoas.
Quantos bilionários precisam deixar de ser bilionários para todo mundo ter moradia, alimentação, saúde, educação, segurança, privacidade e cultura? Dinheiro tem, falta distribuir.
No fim do dia, se estou falando tudo isso, é porque mesmo acreditando que o cristianismo é uma cobra muito venenosa que mata o trabalhador e alimenta os super ricos, Jesus é o mais puro soro antiofídico, aquele que foi extraído do próprio veneno da cobra para se tornar cura: Jesus não era cristão, Jesus era comunismo, amor e revolução!
* Naiara Lira é atriz, cantora e produtora cultural na capital.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva