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Ignorar o "pânico moral" não é o caminho

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"É preciso que as partes mais oprimidas da classe trabalhadora sejam as porta-vozes no enfrentamento ao pânico moral fascista e na propaganda econômica que de fato seja antissistêmica" - ANTRA
"Não há como combater o fascismo sem enfrentar seu principal discurso"

Outro dia assisti o discurso do moleque fascista, que quer ser herdeiro político de Bolsonaro, em um evento oficial na sede das Nações Unidas. Aquele que debocha de travestis e mulheres trans e que diz que o que falta no Brasil é testosterona (e depois são os gays – pelo menos os assumidos – que querem impor seu desejo a todos, rapaz?). Ali, ele ocupava o lugar de “liderança jovem”.

O discurso do deputado tratou da agenda completa do fascismo para influência de massas. Em primeiro lugar, critica a moral neoliberal - individualizante, odiosa, desesperançosa, angustiante – como se fosse o comunismo. O fascismo só funciona com um sentimento de “corpo”, afinal, ao menos para as massas, precisa de uma unidade coletiva. É por isso que a religião, em especial seus setores fundamentalistas, sempre foram uma argamassa importante à ideologia nazifascista. E é por isso que é sempre necessária a construção de um "inimigo" interno.

Não é que o fascismo dos tempos atuais seja contrário à agenda econômica neoliberal, vejam bem. Mas a moral que advém do modelo neoliberal, ao menos na aparência e só para os pobres, precisa ser combatida para que as massas se vejam como tais. Os fascistas, ao menos até que o golpe seja consolidado, precisam do poder das massas. E a melhor forma de se fazer isso, para eles, é associando o individualismo neoliberal - ainda que mentirosamente - ao comunismo. O comunismo pode ser qualquer coisa, é o hiperônimo para tudo: a maldade, a corrupção, a perversão, o pauperismo. A mesma ideia implantada pela ditadura dos milicos, que se sustenta até hoje no ideário das antigas gerações e que vem sendo propagandeada para as novas.

Retornando ao discurso, repercutido inclusive pelo bilionário Elon Musk, é perceptível que o inimigo número um (porque após aniquilado o primeiro, vem o segundo, o terceiro…) é a militância trans e uma suposta “ideologia de gênero” contra as famílias e as crianças. Cabe dizer aqui que "ideologia de gênero" nunca foi um termo usado pelo movimento trans, LGBT ou feminista. Surgiu, na verdade, como nos mostra o Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB), de um grupo católico fundamentalista, em meados de 1990 e início dos anos 2000. Falamos aqui da Congregação para a Doutrina da Fé, antigamente conhecida como Santa Inquisição Romana e Universal. Isso mesmo: Santa Inquisição! 

No discurso, até o desmatamento da Amazônia é usado para uma defesa supostamente antissistêmica, como se o problema não fosse a mineração e o agronegócio, mas sim, ele… O comunismo! Não se fala da economia – isso eles deixam para seus gabinetes. Não se fala da realidade, é simplesmente guerra santa. As condições objetivas da vida, as pautas econômicas deixam de definir a política. A centralidade é o debate moral e é por isso que Lula quase perdeu as eleições e que o bolsonarismo tem muita chance de prevalecer nas eleições de 2024 e de 2026. É por isso que quem consegue mobilizar facilmente o povo é a extrema direita.

A propaganda do atual fascismo é centralmente identitária, de valorização da branquitude pela falsa ideia de “democracia racial”, de valorização da família tradicional – que no Brasil é absurdamente minoritária –, da heterossexualidade compulsória, da perseguição de pessoas trans como demônios perversos que querem “converter” criancinhas. Quando, na verdade, são eles, os fascistas, que buscam construir uma ordem autoritária a partir da fé fundamentalista - e quem não for convertido deve ser aniquilado, até mesmo as crianças que não corresponderem ao que se ordena.

Isso posto, não é que a esquerda também deva centrar sua atuação apenas no âmbito da reprodução social (ou, quando falar dele, falar apenas da política do cuidado cisgênero) e do combate às opressões. A questão é, sim, que não há como combater o fascismo sem enfrentar seu principal discurso. Precisamos avançar urgentemente na organização de pessoas trans dentro das organizações políticas de esquerda e essas devem ter suas pautas repercutidas por toda a militância.

É preciso que as partes mais oprimidas da classe trabalhadora sejam as porta-vozes no enfrentamento ao pânico moral fascista e na propaganda econômica que de fato seja antissistêmica.

Diferente da extrema direita, não é identitarismo o que se propõe aqui. É responsabilidade com os grupos sociais mais oprimidos da atualidade e é desconcertar o discurso fascista com a apresentação da realidade: não somos inimigos internos, podemos representar toda a classe trabalhadora e uma nova perspectiva moral que ponha em xeque o individualismo neoliberal, criticado hipocritamente pelo moleque do vídeo, e o fundamentalismo religioso, proposto por ele como solução. O setor fundamentalista não será derrotado apenas com políticas de compensação social (já limitadíssimas pelos seus próprios representantes políticos e por uma esquerda hegemônica que tem medo de contra-atacar). Precisa ser derrotado na disputa ideológica, seu principal front, que é o que avassala nossos esforços por um novo futuro.

Devemos dizer a verdade: que são eles os destruidores do planeta, os verdadeiros sanguessugas da pobreza e do desespero do povo. Que o caminho são as reformas de base, o investimento estatal em direitos sociais. Mas se as travestis e demais pessoas trans são chamadas de inimigas, comprovemos que elas são parte de nossa classe e que podem ser nossas representantes! Se o comunismo é tratado como obra do demônio, demonstremos que é de fato a única salvação possível! A luta nos exige a coragem e a ousadia que, por hoje, só os fascistas demonstram ter.

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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva