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Memória e justiça: indígenas discutem reparação por crimes cometidos pelo regime militar

Perdas territoriais sofridas por povos indígenas durante ditadura evidenciam "grande mentira" da tese do marco temporal

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
"Reparar para não repetir" foi mote de plenária realizada nesta sexta (26) no Acampamento Terra Livre (ATL) 2024 - Rafa Stedile

O Estado brasileiro já reconheceu que a ditadura militar foi responsável pelo genocídio de milhares de indígenas. Em nome do desenvolvimentismo e de um projeto de integração nacional, o regime matou, torturou e dizimou culturalmente povos originários de diversas regiões do país. Apesar desse reconhecimento, as ações de responsabilização e de reparação ainda são muito tímidas. 

“O problema é gravíssimo, tanto que até hoje somos vítimas do assédio, da invasão, da exploração e da espoliação dos nossos territórios, basicamente de forma legalizada pelo Congresso Nacional, que hoje é ocupado exatamente por descendentes, familiares e inclusive gente que atuou na ditadura contra a sociedade brasileira, e particularmente contra nós”, alertou Paulino Montejo, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante a abertura da plenária “Justiça de Transição, reparação e não repetição dos crimes pela ditadura contra os Povos Indígenas”, realizada nesta sexta-feira (26), no Acampamento Terra Livre (ATL) 2024. 

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), finalizado em 2014, estima que mais de 8 mil indígenas foram mortos pelo governo militar. Lideranças consideram o número defasado, já que o grupo de trabalho investigou apenas dez povos indígenas. Uma das recomendações do relatório final da CNV foi a criação de uma Comissão Indígena da Verdade, assunto discutido na plenária. 

“O governo recuou de toda a pauta de justiça de transição. E é evidente que a pauta da criação de uma Comissão Indígena da Verdade não terá, ao menos nesse momento, o protagonismo do Estado brasileiro”, avaliou o procurador regional da República, Marlon Weichert. “Em vez de aceitar esse recuo, devemos aumentar o grau de maturidade sobre o tema”, propôs. 


"Ditadura militar foi um projeto de morte dos povos indígenas", define Raquel Tupinambá / Rafa Stedile

Durante 21 anos, o regime militar invadiu e tomou territórios indígenas para a construção de rodovias e hidrelétricas, que fomentaram o desenvolvimento de atividades agropecuárias e de mineração. No caminho, deixou um rastro de violência e dor. “A ditadura militar foi um projeto de morte dos povos indígenas”, definiu Raquel Tupinambá. 

Agora, as comunidades lutam não só por justiça e reparação, mas também por memória. Para Braulina Baniwa, da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), o movimento indígena precisa assumir o protagonismo dessa pauta. 

“Da mesma forma que a gente fala de educação, saúde, demarcação, a pauta da memória e justiça precisa ser falada. Porque para que ela se torne de fato um grupo de trabalho nós precisamos demandar isso”, defendeu. “Se a gente não se coloca à disposição para aprender, vai ser sempre os outros falando por nós. Falar sobre isso é pensar num futuro sem dor para nossas meninas e nossos meninos”, completou Braulina durante o encontro. 

Marco temporal: “grande mentira” 

As perdas territoriais sofridas pelos povos indígenas durante a ditadura militar escancaram o absurdo contido na tese do marco temporal, que estabelece que apenas as terras que estavam ocupadas por indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, podem ser demarcadas. 

O povo Krenak, por exemplo, foi expulso do território às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, durante o regime militar. Somente em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou títulos que haviam sido concedidos pela Fundação Rural Mineira aos posseiros que se apropriaram da terra Krenak. Isso significa que em 1988, data estabelecida pelo marco temporal, os Krenak não estavam com a integralidade do seu território.


Marco temporal é "grande absurdo", afirma procurador Marlon Weichert / Rafa Stedile

“O processo de investigação e de revelação do que aconteceu de 64 a 1988 vai deixar ainda mais evidente a grande mentira, o grande absurdo, que é a tese do marco temporal”, afirmou Marlon Weichert. “Contar a história da violação de direitos dos indígenas durante esse período vai demonstrar que a associação entre o empresariado, o latifúndio, o Estado brasileiro e os militares levou à situação de limitação e perda de territórios por parte dos povos indígenas”, explicou o procurador.  

Um passo na direção da reparação

Pela primeira vez na história, a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, reconheceu violações coletivas no período da ditadura militar. Em audiência no dia 2 de abril, a presidente da comissão, Eneá de Stutz e Almeida, se ajoelhou perante à matriarca Djanira Krenak para formalizar o pedido de desculpas aos indígenas Krenak em nome do Estado brasileiro.

O povo Krenak, de Minas Gerais, sofreu diversas violações de direitos durante a ditadura militar. Dentre os episódios de violência estão o deslocamento forçado, a criação da Guarda Rural Indígena (Grin) e a instalação do Reformatório Krenak, presídio construído dentro do território indígena em Resplendor (MG) que violentou representantes de 23 povos. A maioria dos presos depois foram transferidos para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), e nunca tiveram a chance de voltar aos seus territórios. 


Plenária do ATL 2024 discutiu caminhos para justiça de transição e reparação dos povos indígenas / Rafa Stedile

“A ideia da ditadura militar era desterritorializar os povos indígenas, porque dentro da visão miópe desse desenvolvimentismo raso do regime, desenvolver era produzir matérias de consumo. Era uma lógica desenvolvimentista de poluição, de exploração dos recursos naturais”, explicou, durante o encontro desta sexta (26), o promotor Edmundo Antônio Dias, autor do requerimento de anistia ao povo Krenak. 

Para Geovane Krenak, o pedido de desculpas do Estado brasileiro é “super importante”, desde que venha acompanhado do cumprimento dos requerimentos feitos, como a demarcação da terra indígena de Sete Salões, na região do Rio Doce, e de outras ações de reparação e memória. “Fomos anistiados, mas não recebemos reparação”, afirmou na plenária. 

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Edição: Flávia Quirino