No período da Ditadura Militar até a Constituição de 1988, 1654 camponeses foram mortos ou desaparecidos. O dado foi apresentado na terça-feira (2) pelo historiador e ex-preso político da Ditadura Militar, Gilney Viana, membro da Comissão Camponesa da Verdade (CCV).
A apresentação do estudo aconteceu durante o Seminário “Ditadura Nunca Mais: 60 anos do Golpe de 1964 e o campo brasileiro”, realizado no campus da Universidade de Brasília em Planaltina, região administrativa do Distrito Federal.
De acordo com Gilney Viana, a atualização do registro de mortos é importante principalmente para quebrar mitos e falsidades de que a Ditadura Militar brasileira teria sido mais branda e a resistência menos ativa em relação a outros países latino-americanos.
Gilney é pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e guiou a pesquisa que supera os dados divulgados na Comissão Nacional da Verdade (CNV) de 2011 a 2014. Para ele, o resultado da CNV em sua época não cumpriu a dívida com o campesinato pois no documento final, “a comissão reconheceu apenas 41 camponeses de em total de 434 mortos e desaparecidos. Apesar de saber da existência de outros milhares de mortos e desaparecidos forçados. Não aceito que esse número faça justiça a todas as vítimas”, observou.
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De acordo com a análise e autocrítica do historiador, “quase todos na nossa esquerda e nossas intelectuais que pesquisam o número de mortos durante a ditadura, eles só analisavam a questão dos camponeses e dos indígenas se estes fossem filiados a determinados partidos políticos ou se tivessem protagonismo naquilo que consideravam como luta de classe legítima baseados numa teoria política ultrapassada”.
Para o pesquisador, o período da Ditadura Militar e os anos subsequentes foram marcados por muita resistência. “Uma resistência mais profunda e mais radical do que se imagina e se conta quando falamos do final da década de 70 até início de 90. Pessoas que trabalhavam pelo direito de suas terras e que lutaram contra grupos de capangas privados, contra a polícia do Estado e muitas vezes contra os dois ao mesmo tempo”, conclui o pesquisador.
“Guerrilha do Guamá”
Durante a apresentação, a pesquisadora Halyme Franco, membro da CCV, falou sobre o caso da “Guerrilha do Guamá”, que ilustra um dos exemplos de resistência oitentista no campo.
Esse episódio aconteceu no contexto de integração da Amazônia ao restante do país, promovido pelo governo ditatorial. Na época, o grupo empresarial Joaquim Oliveira S.A. Participações (Josapar) sediado no Rio Grande do Sul se instalou no município de Viseu, localizado na Gleba Cidapar no nordeste do estado do Pará.
De acordo com Halyme Franco, durante a transição final da ditadura nos anos 1980, a empresa expandiu seus territórios ao redor desses municípios por meio de compras e invasões de terras. A Josapar deteve 60% das ações da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Banco Denasa de Investimentos (BDI), grupos responsáveis pela integração, e determinou o foco na exploração de mineração local.
Halyme explicou que a empresa passou a organizar grupos armados como guarda particular e expulsou a população camponesa dessa região. “Os camponeses inicialmente resistiram de forma pacífica, começaram a se organizar em sindicatos, ligas de trabalhadores e pequenas reuniões comunitárias para fazer reivindicações perante o estado do Pará. E também pela retirada dos pistoleiros da região, mas o Estado sempre se omitia e passou a ser conivente. Depois do assassinato do líder Sebastião Mearim em 1981, por parte de capangas da empresa, os camponeses optaram pela resistência armada e sob liderança de Quintino Gatilheiro”.
Neste período, ainda conforme Halyme Franco, “enquanto os pistoleiros colocavam suas armas a serviço dos empresários e latifundiários, os Gatilheiros colocavam a munição a favor dos trabalhadores do campo sem deixar de fazer suas exigências do Estado. O então governador Jader Barbalho envia cerca de 300 policiais para combater os Gatilheiros numa série de ações que envolve mortes, tortura, invasão de casas, violência sexual contra mulheres e em 1985 conseguem assassinar o Quintino”, afirmou.
Flechas e fuzis
Durante o Seminário, o jornalista Rubens Valente falou sobre o seu livro "Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura", lançado em 2017. Foi escrito com base na experiência de trabalho nos estados do Amazonas, Mato Grosso e Minas Gerais, além de pesquisa nos arquivos revelados pela Comissão em 2014. “A estimativa mais baixa indica o mínimo de 1.278 mortes de indígenas”, afirmou.
Segundo Rubens Valente, as mortes de indígenas ocorreram de diversas formas em consequência da política imposta pela ditadura. “O governo militar implantou intencionalmente um projeto genocida contra os povos tradicionais” como parte do projeto de integração da Amazônia e que o número exato de vidas perdidas fica ainda mais difícil de ser contabilizado pelo fato que muito nunca foram reconhecidos e não tinham “nem certidão de nascimento e morreram sem óbito oficial”.
“Os contatos com indígenas que resultaram em mortes foram feitos para a abertura de estradas e rodovias, construção de hidrelétricas e criação de núcleos de colonização. As obras eram realizadas sem o consentimento e obedeciam a um plano de integração da Amazônia. Muitas se revelaram mal planejadas, como a construção da Transamazônica”, relatou o jornalista.
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Valente explicou que um dos casos mais chocantes foi a transferência forçada por ordem do alto comando da Aeronáutica para retirar os Xavantes da região de Marãiwatsédé no município do Alto Boa Vista (MT). “Os militares acionaram aviões da FAB e tiraram os indígenas Xavante de seu lugar de origem e os colocaram em uma outra área com distância de mais 600 quilômetros. Apenas em uma semana, 70 morreram por doenças de brancos e ações militares. Outros tantos seguiram incluindo crianças, mulheres e idosos. Eram tantos mortos, que cavaram uma cova coletiva e empurraram com tratores”, concluiu.
Rubens fez questão de ressaltar o julgamento de casos de violência contra indígenas da etnia Krenak , realizado pela Comissão de Anistia. no dia 2 de abril. No resultado do julgamento, foi reconhecido o fato de violência contra o povo Krenak com um pedido de desculpas por parte do Estado brasileiro. Entretanto, o repórter conclui que “para além do respeito de uso e ocupação de suas terras pelos próprios indígenas, somente haverá um mínimo de justiça quando esse pedido não for feito apenas pelo Estado, mas sim pelo alto escalão das Forças Armadas”.
Seminário
O Seminário também contou com depoimentos de lara Xavier Pereira, militante da antiga Ação Libertadora Nacional e articuladora da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e de Francisco Urbano Araújo, membro da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Contag). A atividade foi mediada pela professora da FUP, Regina Coelly Fernandes Saraiva, e contou com o apoio do Coletivo Borda Luta.
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Edição: Márcia Silva