É dentro da lógica conciliatória que Lula deixa de fazer o mínimo
No dia 1º de abril completou-se os 60 anos do Golpe Militar que impôs tortura, mortes, exílios e um atraso enorme na consciência política da classe trabalhadora brasileira.
Com apoio dos EUA, os milicos brasileiros, que têm protagonismo político no Brasil desde o início da República, impuseram sua força mais uma vez. À época, 1964, o medo era de que a burguesia perdesse parte de seus vultosos privilégios, uma vez que o presidente Goulart teimou em persistir com defesa das Reformas de Base, em especial a agrária, mesmo sem ter sucesso nas generosas negociações com os latifundiários. Era uma possibilidade de conquistar uma reforma de base, progressista, que daria ao Brasil soberania nacional, pois a capacidade de maior desenvolvimento social e econômico proporcionada pela divisão de terras poderia se voltar aos interesses dos trabalhadores rurais, não para meia dúzia de latifundiários que produzem para o dólar, não para o povo.
De um momento em que os interesses da burguesia - e não ela em si, como dizem mentirosamente os milicos - foram colocados em xeque, os militares entregaram um Brasil muito mais satisfatório às elites e ao capitalismo mundial. Fizeram uma dívida que nos persegue até hoje e entregaram às maiorias sociais uma classe média ainda mais odiosa, racista, inculta e pau-mandada, convencida até os dias atuais de que o país estava prestes a se tornar comunista. Abriram caminhos para um longo período de governos civis que, por sua vez, agiriam para desmontar a Constituição que seria promulgada.
O atraso imposto pelos anos de ditadura sobre a consciência popular, somado a anos de governo de uma esquerda domesticada, tem relação direta com o golpe institucional de 2016 e com a tentativa de um novo golpe violento em 2023.
Se a cúpula dos milicos não topou uma participação direta, sua omissão serviu para ver até onde iria a resistência das instituições republicanas. Se a tentativa de golpe iniciada naquele 8 de janeiro não aconteceu, é também porque os EUA não tiveram interesse em impor novamente uma ditadura no Brasil. Por que o fariam, se não existe, hoje, nenhuma probabilidade de reformas de base a serem conquistadas pelo povo? O cenário econômico seria de aprofundamento neoliberal sim ou sim, com a diferença de que a diplomacia de um terceiro Governo Lula não geraria asco ao ocidente. O golpe só não aconteceu porque não foi necessário.
O terceiro Governo Lula é de neoliberalismo progressista, do jeito que os ianques gostam. No cotidiano do povo, percebe-se que o governo central não incentiva a morte de grupos sociais historicamente subalternizados, a destruição da natureza e a pobreza extrema que assola o país - mesmo que todas essas mazelas permaneçam em vigor. A opção de Lula foi a continuidade da estratégia petista em todos os seus governos anteriores: conciliar com a burguesia e, por conseguinte, com os milicos. Mas após os governos Temer e Bolsonaro, essa conciliação não pode mais ser feita com a receita social-liberal. As classes dominantes não aceitariam nada mais que o aprofundamento do ultraliberalismo.
É dentro da lógica conciliatória que Lula deixa de fazer o mínimo e amordaça a parte progressista (e despossuída de poder) de seu governo.
Impedir Silvio Almeida e outros setores do governo de fazerem eventos oficiais em alusão aos 60 anos do golpe é lamber as botinas de uma classe que, ao menos hoje, não está com aquela bola toda. Os avanços das investigações contra a intentona golpista e a possibilidade de que Bolsonaro seja preso por seus crimes deveria encorajar o que se tem como esquerda, até mesmo Lula, a questionar o papel dos milicos na política brasileira.
Se nem no atual cenário se aproveita para denunciar o perigo do artigo 142 ou para impedir que militares assumam cargos na política, quando é que o faremos? Se não podemos esperar nada do Congresso, onde está a confiança na força do povo? O povo precisa saber que milico deve servir, não continuar sendo servido. Quando novamente poderemos questionar a militarização das polícias senão no momento em que se descortina a corrupção da PM golpista do DF e o entranhamento das milícias do Rio nas forças de segurança?
:: Amelinha Teles: 'Ainda esperamos política de memória, verdade e justiça sobre a ditadura' ::
Em vez de aproveitar a janela histórica para dialogar e avançar na consciência crítica do povo, agora que nem os EUA têm interesse em nos golpear novamente, Lula cede. E se cede agora, ai do futuro do país! Porque ao contrário da esquerda pelega, a extrema direita está fazendo um ótimo trabalho de base! Eles, sim, sempre contaram com as mobilizações de rua para disputar os rumos da política, a partir do vácuo deixado pelo PT e seus satélites.
Enquanto a economia sob o Lula 3.0 não prospera, nem terá condições de fazê-lo sob a austeridade de Haddad, a extrema direita permanece se colocando como a única alternativa radical contra o atual regime, um regime que lamentavelmente é a suposta esquerda que defende.
Repetiremos a experiência da Argentina e, aqui, o Milei será ainda pior, com um possível apoio direto de Trump de volta à Casa Branca. E também porque aqui, diferente da Argentina, o povo não tem consciência para reconhecer o fardo que significam aqueles anos de trevas e o perigo de não termos punido, até hoje, os nossos algozes.
Tivemos anistia no passado e teremos anistia agora, ainda que se prenda Bolsonaro, o fantoche temporário daqueles que permanecem ditando os rumos da democracia brasileira.
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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva