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Coluna

Um olhar transfeminista sobre o 8 de março

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"8 de março deve servir para que nós percebamos como a sociedade atual oprime e explora todas as mulheres trabalhadoras, ainda que de maneiras diferentes a partir de nossas próprias diferenças" - Foto: Vanessa Tutti
O 8 de março precisa servir para questionarmos a própria ideia patriarcal do que é ser mulher.

Março está chegando e, com ele, invariavelmente se disputa o papel da mulher na sociedade.

Algumas esperam gracejos, dada a exploração de seu trabalho dentro e fora de casa, seja pelo patrão, pelo pai, pelo marido ou pelos filhos. Receber um agrado, pois, seria uma gota de reconhecimento em meio a tanta violência e descuido por quem está a sua volta. No 8 de março por vezes recebemos um afeto forçado (uma rosa, um abraço, um chocolate…e um amanhã nada diferente). Outras, por sua vez, usam a data para lutar por um mundo melhor (mesmo que sem negar um chocolate dado).

As que lutamos queremos um mundo em que não digam que somos inerentemente cuidadoras somente para naturalizar que somos só nós mesmas que cuidamos da casa, das crianças, dos idosos e de sanar o desejo sexual dos outros (com ou sem consentimento).

No mundo de agora, nosso amor só tem valor quando corresponde a interesses que não são nossos, mas dos homens ao redor. Como disse a filósofa Silvia Federici: “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. E ainda que façamos com afeto genuíno o trabalho de cuidar de quem amamos, no fim das contas não é esse afeto que vale. O indispensável é o que fazemos por eles, mesmo.

O debate sobre o trabalho reprodutivo é realizado há mais de um século pelas feministas. Trata-se daquele trabalho que serve para prover ao mercado a força de trabalho necessária para sua manutenção, tanto numericamente, parindo filhos, como qualitativamente, fazendo com que os homens estejam disponíveis ao trabalho remunerado, fora de casa. Desta feita, o trabalho da mulher em casa não seria o trabalho produtivo, que gera bens materiais e serviços remunerados, mas o que fica nos bastidores, dando condições para que os homens possam continuar vendendo sua força de trabalho com disposição e saúde.

As propostas das feministas para enfrentar essa exploração não paga giram em torno da responsabilização do Estado. E por que? Porque o Estado é o conjunto de instituições que garantem a dominação de uma classe sobre outra. E quem se beneficia historicamente com o trabalho doméstico não pago e com a geração de mais trabalhadores não é o homem que bebe cerveja assistindo futebol enquanto a mulher cuida de tudo e de todos, mas a classe que domina, a burguesia. O trabalhador folgado que explora a esposa recebe o privilégio imediato, mas a explora somente para poder continuar sendo explorado.

É a burguesia que pode comprar dessa força de trabalho que já vem prontinha, lavada, passada e alimentada por uma figura cansada que deixa tudo pronto para que fora de casa se explore muito e se pague pouco. Notemos então que, se a burguesia não insemina todos os úteros, é ela quem ganha toda a prole. O termo proletariado nasceu justamente por sermos a classe que oferece nossa prole ao mercado de trabalho, afinal. Triste ilusão do homem trabalhador que insemina e acha que por isso o filho é dele. Somos todos oferendas. 

Contudo o Estado, tendo esse intrínseco caráter de classe, também pode ser um ambiente de pressão das classes de baixo, quando se vive numa democracia. É por isso que exigimos que seja o Estado que coletivize os meios de reprodução, com lavanderias, creches e restaurantes públicos para todos. Ou que remunere diretamente as mulheres pelo trabalho reprodutivo.

Engrenagem patriarcal e capitalista

Diante de toda essa engrenagem patriarcal e capitalista, as mulheres que questionam a realidade de exploração doméstica chamada de amor são as feministas. E feministas classistas, pois percebem que capitalismo, patriarcado e racismo não só andam de mãos dadas, como três figuras independentes. Na verdade, se integraram como um único sistema, de exploração e opressão. E essas feministas, por não aceitarem somente a rosa do dia das mulheres, têm sua própria mulheridade questionada, uma vez que seu corpo e seus interesses servem a si e à coletividade, não ao patriarcado.

Como pode alguém “ser” mulher se não é para servir aos outros? A cabeça dos homens simplesmente entra em pane. E isso explica o motivo pelo qual a palavra “feminista” vem sendo colocada em oposição à feminilidade, à mulheridade, à família, à moral e aos costumes, à religião e à pátria.

É por isso que o 8 de março precisa servir para questionarmos a própria ideia patriarcal do que é ser mulher.

O “ser mulher” patriarcal não deveria ser o nosso exemplo. Se o patriarcado diz que a mulher só serve para cuidar e parir, digamos que não somos somente isso!

Se o patriarcado diz que precisamos estar sempre à disposição dos interesses e desejos dos homens, digamos que não servimos para isso! E se essa não é nossa concepção de mulher, então quer dizer que existem diversas formas de sermos mulheres!

Olhemos ao redor e reconheçamos que não é possível ter uma visão universalista, padronizadora, do que somos. E olhando dessa forma, veremos que mulheres com deficiência, mulheres idosas, mulheres trans e outras não deixam de ser mulheres somente por não corresponderem a todas as necessidades burguesas: fazer sozinha o trabalho doméstico, fazer crescer a reserva de força de trabalho a ser explorada e servir sexualmente ao marido. Mulheres PCD, idosas, trans, obesas e um longo etc. são menos quistas, porque fazem girar menos a roda do mercado em comparação às mulheres cis, sem deficiência, jovens e fortes para cuidar da família etc. Porque, literalmente, valem menos no mercado.

Mas mesmo valendo menos, o sistema capitalista-patriarcal-racista ainda nos arranja funções para a reprodução de sua lógica. As avós, por exemplo, servem para cuidar das crianças enquanto as mães fazem a segunda jornada de trabalho, na rua.

Nós, mulheres trans

E falando especificamente de nós, mulheres trans, nós servimos para que os homens nos usem do jeito que quiserem. Não é à toa que 90% das nossas só conseguem se manter através da prostituição. Pelo menos, diferente do que eles fazem com as mulheres cis com que se casam, no geral eles pagam pelo trabalho sexual daquelas que acham na rua.

Os transfóbicos não dizem que não somos mulheres por não usarem nossos corpos como objetos. Para eles, não somos mulheres porque não podemos cumprir com o projeto patriarcal mais importante para eles: casar, se submeter e dar filhos à burguesia. 

Para o patriarcado, portanto, mulheres trans não podem ser vistas como mulheres porque não existe nada mais radical contra o patriarcado do que subverter a ordem cisnormativa, que define o futuro das pessoas a partir de suas genitálias.

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E, nós, trans, tão mulheres somos, que com brutalidade redobrada nos matam; nos objetificam sexualmente; nos retiram do mercado de trabalho como fazem em menor grau com as mulheres cis (e brancas). E se escaparmos desse destino, o que tentam nos impor é ser a esposinha como qualquer outra, e nosso maior sonho deveria ser copiar o ideal de feminilidade cisgênero. Não é à toa que para convencerem o senso comum de que a Buba da novela seja uma mulher, ela tenha que sonhar em casar e ser mãe.

Finalmente, 8 de março deve servir para que nós percebamos como a sociedade atual oprime e explora todas as mulheres trabalhadoras, ainda que de maneiras diferentes a partir de nossas próprias diferenças. Deve servir para que nos percebamos todas não como vítimas, mas também como agentes de transformação social. Que nos juntando todas, vislumbremos a mulheridade de uma forma diferente do que nos ensinaram que devem ser as mulheres.

O que não podemos deixar acontecer é que o 8 de março, e mais ainda o feminismo, se tornem espaços em que o “ser mulher” se restrinja à concepção patriarcal do que é o gênero. Não “medimos” a mulheridade pela função das mulheres no patriarcado, mas sim por sermos todas oprimidas por ele.

Que nesse 2024 as transfeministas consigam continuar convencendo as feministas cisgênero de que nós devemos caminhar juntas. Para o desespero dos que querem manter privilégios e por um mundo sem eles!

*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do PSOL-DF.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino