A luta social é um direito e uma possibilidade na democracia e não uma atividade marginal
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nasceu, em 1984, no contexto de reconstrução das forças coletivas e democráticas da sociedade brasileira. Surgiam naqueles anos finais da ditadura várias frentes organizadas: o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978; o Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980; a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983.
Quatro anos depois do nascimento do MST é promulgada a nova Constituição Federal (1988), apelidada de “Cidadã”. Para compreendermos a longevidade de quatro décadas do maior movimento social popular brasileiro e latino-americano é fundamental o entendimento das garantias constitucionais que conferem respaldo legal à luta popular pela reforma agrária e pelo cumprimento da função social da terra.
Contra a narrativa que associa o MST à desordem, a baderna, que busca por todos os meios criminalizar as ações e táticas e associá-las ao terrorismo, o movimento atua evocando a lei, o código agrário e os direitos constitucionais que zelam para que todo ser humano tenha direito à moradia, acesso à educação, saúde e alimentação.
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A adesão à luta pela terra se faz pela necessidade imediata e pela construção da consciência e convicção de que as pessoas estão do lado certo da história: a luta social é um direito e uma possibilidade na democracia e não uma atividade marginal e contra a ordem, como é representada corriqueiramente nos meios de comunicação empresariais.
Para dialogar com as famílias nas periferias o MST desenvolveu amplo conhecimento de métodos de trabalho de base e técnicas de educação popular. O Movimento é herdeiro do legado das Ligas Camponesas, que atuavam com a Bíblia e a Constituição, organizando trabalhadores rurais nos idos das décadas de 1950 e 1960.
Cultura e arte na construção da identidade
No âmbito cultural o MST aprendeu também com o Movimento de Cultura Popular (MCP), que nasce em Pernambuco, e teve como seu integrante mais famoso o professor Paulo Freire, sistematizador da Pedagogia do Oprimido. Em termos de método, a experiência dos Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE) também está presente no MST por meio das atividades das brigadas de agitação e propaganda, como a brigada Carlos Marighella, e as brigadas e frentes artísticas, que agregam e promovem processos formativos para os artistas militantes, que por sua vez, reproduzem os aprendizados em acampamentos, assentamentos, escolas do campo e centros de formação.
A cultura e a arte no MST cumprem papel decisivo na construção da identidade Sem Terra, além de exercerem funções formativas, pedagógicas, integradoras, organizativas e de entretenimento, como de forma pioneira identificou Roseli Caldart no livro “Sem Terra com Poesia”.
Educação libertadora
Para a educação brasileira a luta pela educação do campo contribuiu não apenas com políticas públicas para manter as novas gerações de camponeses no campo brasileiro, mas também com conceitos, para a produção de novos conhecimentos. As mais de quarenta licenciaturas em Educação do Campo no país, existentes desde a primeira década do século XXI em universidades e institutos brasileiros, formam milhares de professores camponeses, quilombolas e indígenas para atuarem em suas comunidades e territórios.
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Enquanto o agronegócio expulsa as pessoas do campo, desterritorializa e fecha escolas, a reforma agrária luta para manter as famílias de trabalhadores no campo, com escola, cooperativa, vida cultural, preservação da natureza, reflorestando áreas degradadas.
Representação na mídia
Apesar de ser representado pela mídia empresarial como um esteio de partidos políticos, sobretudo o Partido dos Trabalhadores, é frequente o conflito de posições entre Movimento e partidos a partir de divergências estratégicas e táticas, e do que é prioritário para a construção de um projeto socialista e popular para o Brasil. Exemplo foi a Marcha Nacional por Justiça Social e Reforma Agrária, em 2005, para exigir do governo petista a realização da reforma agrária, que Lula dizia em campanha que faria com uma canetada se eleito presidente do Brasil. Nesta Marcha, o MST deu um dos maiores exemplos de capacidade organizativa popular da história do país: mais de 12 mil pessoas marchando em duas colunas de cinco quilômetros de cumprimento, por dezessete dias, de Goiânia à Brasília.
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A mídia representa o MST dentro dos parâmetros hegemônicos de representação da realidade: individualiza e personaliza o protagonismo em duas ou três lideranças, não publiciza a existência de um sujeito coletivo e invisibiliza a vida e dinâmica organizativa coletiva da organização, que é um dos principais legados do MST para a cultura política da sociedade brasileira.
Sou da geração que passou pela graduação em meados da década de 1990. Na época, resistíamos à precarização e ameaças de privatização da universidade pública, e o conceito de práxis era compreendido por nós apenas de forma teórica. O MST, em franca luta contra o neoliberalismo, emergia na história brasileira como um sujeito coletivo que exemplificava pelas marchas, pelas ocupações, pelas escolas itinerantes, pela resistência aos despejos, pelo método de organicidade, pela democracia ascendente, o que é a dinâmica da práxis da luta social em movimento.
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Parte daqueles estudantes encontrou então uma experiência outra de engajamento, orgânica, que nos proporcionou contato direto com a classe trabalhadora do campo e um processo formativo complementar ao que vivenciamos na universidade, que na época anterior às cotas e demais políticas de inclusão era um ambiente de elite e classe média branca.
A luta contínua contra a desigualdade e pela democratização da terra por quatro décadas, a tática de resistência adotada durante o governo Bolsonaro, a aproximação com a cidade por meio dos armazéns do campo, de feiras da reforma agrária, da cultura e da produção de alimentos saudáveis, o fortalecimento da atuação em redes sociais e da produção audiovisual do MST, e as ações de solidariedade no combate à fome e no combate à pandemia da Covid 19 evidenciam o contraponto que o MST faz à elite rentista e colonialista do país, que comanda o agronegócio como um modo de produção agressor da natureza e explorador da classe trabalhadora brasileira.
Após enfrentar e vencer Comissões Parlamentares de Inquérito da bancada ruralista no poder legislativo, após resistir à movimentos como a União Democrática Ruralista (UDR) e agora ao Movimento Invação Zero (MIZ), o MST chega aos 40 anos com expressivo apoio popular, das universidades e com fortes articulações internacionais.
Esperamos que em 2034, no aniversário de cinquenta anos, o MST possa comemorar a efetivação da reforma agrária no Brasil, e seguir adiante, pois são muitas as pautas, demandas e batalhas a serem travadas.
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*Rafael Villas Bôas é professor da Licenciatura em Educação do Campo da UnB e jornalista.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Márcia Silva