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“Longe do meu lado”: ao abdicar da condição de ser, o indivíduo perde a perspectiva de humanidade

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"O mudo fica sabendo o que ocorre em qualquer lugar do planeta quase que em tempo real. Mesmo assim os sofrimentos não causam indignação ou, quando causam algum sentimento, ensejam uma indignação passageira." - Créditos: Reprodução
a maioria das pessoas aceita que a aparência é mais importante que a presença.

A frase do título, retirada de uma das composições de Renato Russo, sugere certa contradição. Contudo, neste fim de ano, a cena de uma multidão reunida em Paris materializou o que o poeta afirmava na canção. Milhares de pessoas, em frente à Torre Eiffel, fascinadas pela queima de fogos, apontavam os celulares no intuito de registrar cada explosão que iluminavam o céu. Compreensível o fascínio, mas, incômodo o fato de que cada pessoa agisse como se, apesar de outras pessoas ao lado, estivesse sozinha.

A imagem parece mais uma aglomeração de celulares do que uma reunião de pessoas. Embora os corpos estivessem muito próximos, cada indivíduo se resumia a seu celular, e à incapacidade do aparelho para o afeto e humanidade.

Essa cena chama atenção porque parece ser o emblema deste tempo histórico em que estamos vivenciando.

O abraço, o aperto de mão e o toque de carinho foram substituídos pela impessoalidade do provável compartilhamento mediado pelo aparelho.

Mas, o problema real não é o aparelho, é o déficit de humanidade que vivenciamos atualmente.

Com bem afirma o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman na sua obra “Amor líquido”, vivemos num mundo em que tudo é líquido, ou seja, vivemos na cultura do descarte, e, nessa perspectiva, alimentar afetos requer tempo, e, tempo é dinheiro.

Considerando a necessidade imperiosa em utilizar para ganhar dinheiro, é mais do que adequado fazer uma boa foto para demonstrar nas redes sociais que a vida vai bem, do que despender tempo para compartilhar afetos.

Nas redes sociais, nos grupos de relacionamentos virtuais, qualquer pessoa pode ser o que desejar, e uma boa foto é a comprovação de que, virtualmente, está tudo às mil maravilhas.

Há pesquisas que dão conta de que as pessoas, atualmente, ficam quase metade do tempo diário conectadas nas redes sociais e em grupos de relacionamentos virtuais. Dessa forma, a vida real é parte da vida virtual, transformando o indivíduo em uma personagem de sua própria existência.

A questão é que o modo de vida virtual se assenta, sobre uma proposta de homogeneidade de comportamentos, de estética e de linguagens aos indivíduos. Essa ideia de homogeneidade que ganha força com a utilização massiva das redes sociais, vem, contudo, desde muito antes, alimentada pela proposta capitalista que estabelece modelos ideais de indivíduos. Uma vez que as redes são produzidas e alimentadas pela lógica capitalista cada indivíduo tenta demonstrar o quão próximo está dos modelos ideais ao postar fotos sobre viagens constantes, bens adquiridos, participação em grandes eventos etc. Todos os registros com muitos sorrisos e expressões padronizadas.

Nesse sentido, ao não compreenderem que os modelos ideias estabelecidos pelo sistema capitalista são baseados no consumo desenfreado, a maioria das pessoas aceita que a aparência é mais importante que a presença.

Comportamento que ajuda a entender o porquê do fato de centenas de pessoas se reunirem em uma praça de Paris, fascinarem-se com o brilho dos fogos, mas, não se darem conta do (a) outro (a) que está ao seu lado. O distanciamento afetivo, apesar da proximidade física, é também causa da insensibilidade em relação ao sofrimento a que milhões de pessoas são submetidas em todas as partes do mundo.

Há algumas décadas, a informação sobre infortúnios vivenciados por pessoas e comunidades mundo afora, demorava muito tempo para ser divulgada. Hoje, é instantânea. O mudo fica sabendo o que ocorre em qualquer lugar do planeta quase que em tempo real. Mesmo assim os sofrimentos não causam indignação ou, quando causam algum sentimento, ensejam uma indignação passageira.

No Brasil, por exemplo, durante a pandemia do novo coronavírus, centenas de indígenas e populações carentes foram abandonados à própria sorte, ou óbvio infortúnio, pela insistência do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), em desconsiderar a gravidade da covid-19. Nesse cenário de descaso, estima-se que se tivesse havido um processo célere de aquisição de vacinas e incentivo à vacinação em massa cerca de 400 mil vidas poderiam ter sido preservadas.

Contudo, o Brasil perdeu mais de 700 mil vidas, o que representa, cerca de 10% das vítimas fatais em todo o mundo, sendo a população total do País pouco mais de 3% da população mundial. Vale ressaltar que, apesar desse fato, o ex-presidente conseguiu mais de 30% dos votos dos eleitores brasileiros, que ao desconsiderarem a realidade objetiva optaram pelas versões e justificações disseminadas através das redes sociais.

A insensibilidade ao outro somada ao fascínio pelo objeto tem construído uma sociedade do ilusionismo e insensível, uma sociedade sem afeto, em que ter e parecer é mais importante do que ser.

Ao abdicar da condição de ser, o indivíduo perde a perspectiva de humanidade, colocando-se na condição de “coisa” incapaz de afeto e de sentimentos de pertencimento a uma comunidade de seres humanos. Perde o sentido da importância do coletivo.

A humanidade que produziu tantos avanços tecnológicos, que potencializou o espírito humano por meio da arte e da cultura, tem, hoje, o grande desafio de construir a dimensão humanista do afeto, da generosidade, da alteridade e da indignação frente a toda ação que ameaça ou destrói a vida.

É preciso substituir a distância alimentada pelo individualismo e pelo consumismo desenfreado, pelos afetos que se materializam na vida em comunidade e no acolhimento das necessidades individuais como necessidades coletivas.

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*Cleber Soares, professor da rede pública de ensino do Distrito Federal e diretor do Sinpro-DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino