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Mostra Terra em Cena e na Tela: não haverá democracia sem igualdade racial

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Cena de "Pequeno Manual Antirracista" do grupo de teatro da Escola Parque Anísio Teixeira, de Ceilândia, baseada no livro da escritora e ativista Djamila Ribeiro - Foto: Carolina Cherfem
Nem na tragédia coletiva há igualdade de condições, persiste a desigualdade racial

O racismo no Brasil permanece fatal, ceifando vidas da juventude negra brasileira. Permanece operando uma filtragem seletiva no mercado de trabalho.

A pauta racial continua secundária na escolha de figuras do primeiro escalão da política brasileira. Todavia, o cenário das últimas décadas não é estanque. Há dinâmicas transformadoras em curso, como as cotas para o ensino público superior e, posteriormente, estendidas para diversos concursos públicos e carreiras de Estado. Há maior presença da população negra na publicidade, no telejornalismo, na ficção: a ausência não é mais naturalizada, invisibilizada, pelo contrário, é cobrada, pautada.

Exemplo desta mudança em curso foi a V edição da Mostra Terra em Cena e na Tela, que reuniu entre os dias 13 e 15 de novembro, no campus de Planaltina da Universidade de Brasília (UnB) cinco apresentações teatrais e três documentários.

No primeiro dia foi apresentada a peça "Pequeno Manual Antirracista" por um grupo de teatro da Escola Parque Anísio Teixeira, de Ceilândia, baseada no livro da escritora e ativista Djamila Ribeiro. Semanas antes, a peça recebeu os prêmios de melhor peça e melhor dramaturgia original na 8ª edição do Festival de Teatro Amador do Distrito Federal, que reuniu grupos de diversas escolas públicas e privadas.

:: V Mostra Terra em Cena e na Tela promove formações, apresentações teatrais e cine-debates ::

Com elenco de 26 adolescentes, a peça é construída por meio de amplo repertório de procedimentos teatrais, que vão de coreografias de dança articuladas com textos declamados em coro, encenação de histórias da cultura do continente africano, paródia com a fábula Cinderela, colocando no centro do palco uma protagonista negra, hostilizada pela madrasta e pelas filhas brancas. O que está em jogo, costurando os atos da peça, é a socialização de um vocabulário de mandamentos, diretrizes de ação, para o reconhecimento e combate do racismo. De forma didática, os pontos de vista conservadores sobre os marcos da história brasileira são refutados, questionados, ironizados e satirizados.

Certamente há quem possa estranhar o excesso do didatismo no enredo, mas a proposta se banca pelas qualidades políticas e estéticas. Afinal, por que mesmo não podemos ser categóricos, e propor em cena modelos de ação? Quem disse que o teatro não pode ser um dispositivo formativo e organizativo para o combate ao racismo? A adesão entusiasmada do público nas apresentações em Ceilândia, na 8ª edição do Festa, e depois em Planaltina, na 5ª Mostra Terra em Cena e na Tela, mostram que a abordagem esteticamente vigorosa e didática cumprem importante papel.

"Pequeno Manual Antirracista" é um espetáculo épico, com diversas cenas que recorrem à estética do teatro de agitação e propaganda, e outras em que a encenação dramática está submetida à estrutura épica do material e da narrativa. Exemplar trabalho de direção e produção das professoras Alana de Azevedo, Melissa Naves e equipe, e do que pode ser feito em termos de pesquisa e trabalho teatral quando há espaço e estrutura disponível no ambiente escolar.


Apresentação do Latera / Foto: Angela Caetano

O tema do racismo estrutural esteve presente também em outras peças da V Mostra, como na intervenção de teatro de agitação e propaganda do elenco do Laboratório Teatro e Reforma Agrária (Latera), coordenado por Julie Wetzel, em que foi colocado em cena o fato das vítimas das emergências climáticas serem sempre as mais pobres e as mais negras, ou seja, nem na tragédia coletiva há igualdade de condições, persiste a desigualdade racial acirrando a barbárie brasileira que tem no racismo, como legado da escravidão, uma de suas marcas estruturantes.

Na montagem "Calcário", dirigida por Pedro Ribeiro, do coletivo que leva o mesmo nome, é encenada a história da população da Fercal, região que recentemente se tornou região administrativa, apesar de existir antes mesmo da inauguração de Brasília.

A Fercal é uma das regiões mais desassistidas do Distrito Federal, entretanto, por conta das fábricas de cimento, tem um dos maiores índices do Produto Interno Bruto do DF. Ou seja, a região produz riqueza, mas seus habitantes são pobres, e de maioria negra, porque tem que vender a força de trabalho para um modo de produção da indústria de cimento que polui o ar, degrada a natureza e não investe da qualidade de vida dos moradores.

O elenco de Calcário pesquisa a memória da comunidade envolvendo as pessoas interessadas em oficinas, e nos ensaios, em laboratório, constroem as cenas que abordam a vida dos habitantes da cidade, os afetos e a dimensão trágica da sobrevivência na mais antiga região proletária industrial do Distrito Federal.


Cena de Calcário que conta a história da população da Fercal / Foto: Angela Caetano

Dois grupos de teatro do quilombo Kalunga, o veterano Vozes do Sertão Lutando por Transformação (VSLT) que completou em outubro dez anos, e o estreante Jiquitaias, apresentaram peças que confrontaram o projeto Goiás Tech, da Secretaria Estadual de Educação de Goiás, que está substituindo professores por aulas gravadas em vídeo, e colocando em sala apenas uma ou um mediador para ligar e desligar o aparelho de TV.

A proposta alardeia modernidade quando na prática quer diminuir custos com a folha de professores estaduais, esvazia escolas quilombolas e do campo e fecha oportunidades de emprego para centenas de quilombolas e camponeses que se formam nas Licenciaturas em Educação do Campo e outros cursos superiores.

Se não ataca pela violência direta, o agronegócio se camufla por trás do discurso de modernidade e tecnologia para continuar expandido terras para o monocultivo, fechando escolas do campo e quilombolas e intensificando o êxodo rural.

Nos filmes apresentados na V Mostra Terra em Cena e na Tela a questão quilombola aparece enquanto resistência, enquanto festa, enquanto manifestação do direito à cultura, à terra e à educação. A dança, por sinal, é um elemento presente nos três filmes da mostra, "Marta Kalunga", "Grupo de Sussa Flores e Frutos do Quilombo Kalunga" e "Nossa cultura, nosso ritmo". Há uma preocupação do cinema quilombola e também no indígena de não abordar apenas as faltas, as demandas, de não tornar o eixo da denúncia o único ou principal, para que ele não sopese às dimensões da beleza da vida, da memória ancestral, da resistência que se faz em festa, em encontro, em transmissão de experiência, de geração para geração.

Passada a V Mostra, os grupos seguem seus processos de ensaio, circulação, manutenção e ampliação do repertório.

A luta contra o racismo se manifesta, não mais como um "tema de minoria", uma "agenda secundária", um tema abordado apenas na Semana da Consciência Negra, pelo contrário, cada vez mais o tema é considerado a pauta do dia, uma questão de sobrevivência pelas comunidades de zonas periféricas urbanas, pelas comunidades quilombolas e camponesas, na medida em que é compreendido como uma questão central da democracia e da luta contra a desigualdade no Brasil.

Não haverá democracia sem igualdade racial.

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*Rafael Villas Bôas é jornalista e professor da Universidade de Brasília.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Márcia Silva