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Saúde Mental: “Se precisar, peça ajuda!”? Onde e para quem, GDF?

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"Além de poucos locais onde se pode pedir ajuda, as equipes que trabalham nesses locais estão defasadas" - Foto: Artur Moês - Coordcom/UFRJ
Campanha do GDF não se sustenta na realidade

No primeiro dia deste mês de setembro, a Secretaria de Saúde (SES/DF) lançou a campanha do Setembro Amarelo de 2023, que encoraja a busca por ajuda em situações de sofrimento mental. Esta é uma iniciativa mais abrangente, que tomou caráter nacional, e que aborda temáticas fundamentais em nossa atualidade, como o suicídio e a saúde mental.

Contudo, a própria campanha pode e deve ser problematizada quanto à sua motivação mercadológica e corporativa, atrelada à própria concepção do suicídio como problema único e exclusivo de saúde mental e a própria saúde mental, por sua vez, entendida como algo individual-privativo, com hegemonia de perspectivas psicologizantes e psiquiatrizantes.

No caso da campanha, apesar de buscar ir além de tais perspectivas, entendendo que a saúde mental “começa na promoção de hábitos que ajudam a manter o bem-estar, como a prática de exercícios físicos, a alimentação saudável e o respeito ao sofrimento diante de momentos difíceis da vida, comuns a todas as pessoas, como lutos, perdas e mudanças”, ela não rompe com um olhar individualizante, desconsiderando que tais “hábitos” remetem às condições concretas de vida da população, sinalizando que a sua promoção é de responsabilidade integralmente individual.

No entanto, só como um exemplo, como pensar na prática de exercícios físicos, alimentação saudável em uma realidade como a do DF em que o grosso da população perde parte significativa de seu tempo no trânsito, em decorrência de uma das piores políticas de mobilidade urbana do país?

Ou considerando que o DF tem 32% da população em insegurança alimentar grave ou moderada, sendo que a fome atinge 13,1% da população da capital? Nisso, a promoção de tais hábitos não é fundamentalmente responsabilidade do Governo do Distrito Federal (GDF)?

Ainda no caso do DF, questionamos também as insuficientes e precárias condições de assistência para aqueles e aquelas que necessitam de algum cuidado em saúde mental. Por exemplo, apesar dos referidos 316 psicólogos e 100 psiquiatras na ativa, além dos profissionais de outras carreiras, é sabido que a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), na qual tais profissionais estão inseridos, não consegue absorver a demanda em saúde mental e ofertar o cuidado necessário às necessidades da população. 

Por exemplo, no caso de “sintomas leves e moderados”, o GDF indica que a pessoa procure a sua Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência. Porém, é importante sinalizar que o DF era a unidade federativa com a pior cobertura de Atenção Básica, com apenas 58,72% (Desinstitute, 2021).

Além disso, de acordo com o relatório Saúde Mental em Dados (2022), da Diretoria de Serviços de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde (DISSAM/SES-DF), metade das equipes dos antigos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), atuais Equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde (eMulti), estão incompletas.

Ou seja, além de poucos locais onde se pode pedir ajuda, as equipes que trabalham nesses locais estão defasadas, o que tende a aumentar sua demanda, sobrecarga de trabalho e, inclusive, piorar suas condições de saúde. 

DF não atende demanda

Já para os “casos moderados a graves”, a campanha indicou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Contudo, em 2010, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) determinou que deveriam existir 32 CAPS em funcionamento em todo território do DF, sendo que haviam apenas 13 naquela época.

De lá para cá, foram construídos mais cinco, resultando em 18 CAPS funcionando atualmente. Desta forma, considerando apenas a população do DF em 2010 (que é menor do que a atual), seria necessário construir mais 14 CAPS para que o atendimento psicossocial do DF obedecesse a critérios mínimos. E, como se não bastasse a falta de CAPS, ainda há a escassez de trabalhadores nesses equipamentos públicos.

Durante um seminário sobre saúde mental realizado em maio na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), a diretora da DISSAM/SES-DF, Fernanda Falcomer, informou haver um déficit de 400 psicólogas(os) e de 240 assistentes sociais atualmente. Soma-se a isto o recente término dos contratos de profissionais da saúde, sem previsão qualquer para concursos em caráter de urgência, deixando as condições de trabalho e de assistência à população ainda mais precárias. Ou seja, os números declarados de profissionais na postagem, mesmo que verídicos, estão muito aquém do necessário.

Então, se o atendimento aos casos leves, moderados e graves está prejudicado, como ficam os casos de sofrimento mental com necessidades assistenciais de urgência e emergência?

Campanha incoerente?

A campanha do GDF cita que a pessoa pode acionar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Porém, durante a pandemia, na primeira gestão do governo Ibaneis Rocha, tentou-se desmontar o Núcleo de Saúde Mental do SAMU, recebendo críticas de parlamentares e servidores que ressaltaram a importância deste serviço, principalmente após a pandemia da Covid-19. Outra opção ofertada pela campanha é procurar a emergência psiquiátrica do Hospital São Vicente de Paulo (HSVP).

Esse hospital, além de estar funcionando ilegalmente há mais de 20 anos (de acordo com a Lei Distrital nº 975/1995), já foi objeto de inspeção pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), a qual constatou “graves e preocupantes violações de direitos humanos”. Ou seja, o GDF não só se orgulha em manter um manicômio público e ilegal, como continua a divulgá-lo como possibilidade de cuidado, minimizando, inclusive, a existência e/ou o fortalecimento de serviços realmente assistenciais (não-manicomiais).

:: Por que o Hospital São Vicente de Paulo ainda existe? ::

Para piorar, o DF ainda não conta com nenhum Serviço Residencial Terapêutico (SRT), que poderia acolher muitas pessoas depositadas e violentadas historicamente no HSVP, com o edital de credenciamento das instituições para o gerenciamento das SRTs em andamento.

Portanto, uma campanha com postagens nas redes sociais sem a devida sustentação na realidade concreta nos faz questionar a real preocupação do GDF com a saúde mental de sua população, para além da retórica.

Como contribuições para uma real preocupação e efetiva abordagem à saúde mental, sugerimos:

1) construção de, no mínimo, 14 CAPS;

2) concurso urgente para as centenas de servidores necessários para as equipes de CAPS, eMulti e demais serviços da RAPS, do SUS (e outras políticas setoriais);

3) construção de mais UBS e ampliação da cobertura de Atenção Básica;

4) ampliação e valorização do Núcleo de Saúde Mental do SAMU/DF;

5) ampliação da RAPS no DF no geral;

6) desativação do HSVP, com consequente distribuição dos seus usuários, de orçamento etc. para dispositivos da RAPS que ofereçam cuidado singular de base territorial comunitária;

7) ampliação e fortalecimento das políticas não só de saúde, mas de assistência social, emprego, moradia, alimentação, esporte, lazer e cultura, transporte urbano e mobilidade social, dentre outras, afinal, saúde mental não é sinônimo de sofrimento psíquico, muito menos transtornos, sendo, ao contrário, produção de vida, expressão de como e onde temos vivido.

:: Leia outros textos desta coluna aqui ::

*Débora Ferreira, Fernanda Periles e Pedro Costa são membros do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.

**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras e do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Márcia Silva