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Cerrado Vive!

Preserva Serrinha: ‘especulação imobiliária e grilagem surgem quando Estado se omite em organizar o território'

Confira a entrevista com Lúcia Mendes, coordenadora do Fórum de Defesa das Águas do DF sobre as ameaças à Serrinha

Brasília |
Registro de drone para o Projeto 'Brasília Sensível à Água' da UnB mostra região - Valmor Pazos Filho

Responsável por abastecer o Lago Paranoá, em Brasília, a Serrinha do Paranoá, localizada entre as regiões administrativas Varjão e Paranoá, é alvo de pressão da especulação imobiliária para a construção de novos empreendimentos. 

“Quando o estado se omite no seu papel de organizar o território, a consequência costuma ser uma pressão muito grande de grilagem e de parcelamento irregulares”, declara Lúcia Mendes, presidente da Associação Preserva Serrinha, afirmando que é essa a situação que ocorre por ali. 

A região é sensível devido à presença de importantes cursos d'água que fazem parte da Área de Proteção Ambiental (APA) do Planalto Central: são mais de 100 nascentes espalhadas pela cobertura vegetal de Cerrado.

Composta pelos núcleos rurais Boa Esperança, Olhos D'Água, Urubu, Jerivá, Torto, Bananal, Palha, Taquari, Tamanduá e Capoeira do Bálsamo, a Serrinha abriga ainda as sub-bacias do Lago Paranoá e do Ribeirão do Torto. 


Mapa da região da Serrinha do Paranoá e dos núcleos rurais que a compõem / MDR GOV


Mapa de algumas nascentes existentes na Serrinha do Paranoá / MDR GOV

Sociedade civil 

Para lutar contra a impermeabilização e em defesa das águas da região, a sociedade civil organizada resiste. 

Em 2016, o Projeto Guardiões das Nascentes foi organizado pelo Instituto Oca do Sol, no contexto do Projeto Águas, quando a comunidade da Serrinha do Paranoá foi mobilizada para o mapeamento de nascentes do seu território, em parceria com a Administração Regional do Lago Norte.

Já em 2022, uma iniciativa comunitária entre moradores da região da Serrinha e membros da Escola da Árvore criou o “Salve a biodiversidade da Serrinha do Paranoá”, na plataforma iNaturalist, que coleta dados sobre biodiversidade. 

Até o momento, foram feitas 4.632 observações e 1.143 espécies identificadas. O resultado pode ser visto no site do projeto

No mesmo ano, o projeto de pesquisa 'Brasília Sensível à Água', ligado à Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), publicou o caderno “Serrinha do Paranoá Sensível à Água”, com estudos e sistematizações sobre a realidade do local. Confira no site Preserva Serrinha


Córrego do Urubu fica localizado no Núcleo Rural de mesmo nome / Olivier Boëls

Um estudo feito no Laboratório de Abelhas da mesma universidade identificou a presença de abelhas nativas na região. 

“Foi observado que as áreas foco de supressão vegetal pelo projeto para-governamental e com menor proporção de urbanização apresentam maior riqueza de espécies que as áreas mais alteradas”, aponta o levantamento

A pesquisa indica também que a urbanização pode levar à extinção das espécies ali presentes. “O projeto atual de urbanização com a supressão da vegetação e da fauna destas áreas potencialmente levará à extinção local das espécies presentes na Serrinha do Paranoá.” 

Um outro estudo da UnB, coordenado pelo professor de geofísica José Vicente Bernardi, realizado na Serrinha do Paranoá, apontou que a região pode ser prejudicada pelas obras previstas para serem executadas por ali – e que também deverão causar aumento do tráfego. 

Frente Parlamentar 

No início de agosto deste ano, a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) sediou o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Serrinha do Paranoá, com a presença de diversos representantes e defensores da região, incluindo o também presidente da Comissão de Direitos Humanos, Fábio Félix.

A iniciativa marca “o início de um esforço conjunto para proteger o meio ambiente da área”, destacou o deputado. 

De acordo com Fábio, o Governo do Distrito Federal (GDF) precisa repensar a questão fundiária e a especulação imobiliária. Ele destacou que interesses econômicos têm impulsionado a exploração de diferentes áreas, muitas vezes negligenciando considerações técnicas.

Em março de 2022, o então deputado distrital Leandro Grass enviou à Promotoria de Defesa da Ordem Urbanística do MPDFT um ofício falando sobre irregularidade no requerimento feito pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) para que houvesse a supressão de vegetação nativa da área em que está sendo implementado a segunda etapa do Setor Habitacional Taquari.   

O MPDFT, por sua vez, recomendou à Terracap e ao Ibram que seja suspensa a implantação da obra. 

Lúcia Mendes, que também é coordenadora do Fórum de Defesa das Águas do DF, conversou com o Brasil de Fato sobre o assunto. Leia a entrevista na íntegra: 

Por que a Serrinha do Paranoá é suscetível à especulação imobiliária?

A região da Serrinha era para ser conservada como um corredor verde de produção de alimentos e de conservação do Cerrado. Mas, desde o Plano Diretor Organizacional e Territorial de 2009, alguns trechos desta área foram definidos como de “expansão urbana”. 

Ainda admitiam, naquela época, a permanência de áreas com características rurais. E que teriam pela legislação, a prioridade de regularização para se manter nesse formato.  

Mas não foi feita essa regularização. E quando o estado se omite no seu papel de organizar o território a consequência costuma ser uma pressão muito grande de grilagem e de parcelamento irregulares. É algo que vem acontecendo de forma descontrolada aqui na Serrinha. 

Essa pressão aumentou quando veio também em 2022 a consulta pública sobre a construção da terceira ponte, da última ponte aqui no Lago Norte, que seria para viabilizar o acesso para a região de Sobradinho passando aqui por meio do do Núcleo Rural do Palha e subiria lá para Sobradinho. Mas na verdade é pra dar acesso ao Setor Habitacional Taquari.

E como os projetos imobiliários podem afetar a Serrinha?

Esses projetos imobiliários e o parcelamento do solo, ou seja, ação de grilagem e ação do próprio GDF, são coisas que ameaçam profundamente a vida aqui na Serrinha.

E não é só na Serrinha, porque a partir de 2016 foram identificadas mais de cem nascentes aqui. Em 2019, quando foi feito o estudo do Zoneamento Ecológico Econômico, foram identificadas áreas de riscos geológicos, como a perda de Cerrado nativo, o risco de contaminação de solo e o risco de área de recarga de aquífero.


Lúcia Mendes é coordenadora do Fórum de Defesa das Águas do DF e presidente da Preserva Serrinha / Arquivo Pessoal

Nós conseguimos também acesso a alguns estudos de professores da UNB que identificaram a quantidade de abelhas nativas meliponas que tem aqui na Serrinha, que é uma espécie em extinção. Além disso, foi identificado que a instalação do Taquari I, aquele que tem lá perto do Colorado, impactou o nível de vazão de todos os córregos da Serrinha.

A construção de empreendimentos e consequente impermeabilização do solo afeta a provisão de água para a cidade?

Em 2017, quando houve o racionamento de água, a crise hídrica aqui na região da saída aqui da desembocadura do Córrego do Palha, foi colocada uma unidade de captação de água para abastecimento. 

Foi quando o Lago Paranoá se tornou fonte de abastecimento de água para consumo humano. Então, o que acontece? Com esses empreendimentos, pontes e setores habitacionais que a Terracap quer colocar aqui, vai comprometer a possibilidade da manutenção dessa captação e a sustentação desse abastecimento de água potável para a população.

Preservar a Serrinha não é mais só uma questão de garantir o direito dos moradores tradicionais que moram aqui. Pessoas que vieram pra cá há mais de trinta, quarenta anos. É uma questão de equilíbrio hídrico e de sustentação do abastecimento de água para população de Brasília. Soma-se a isso que nós, quando começamos a defesa da Serrinha, acabamos nos juntando a outras regiões da cidade que vivem o mesmo tipo de ameaça. 

O que acontece no Distrito Federal pode afetar o país?

O Distrito Federal está situado no bioma Cerrado, que é também conhecido como a caixa d'água do Brasil. E esse ‘quadradinho’ aqui de Brasília ele tem uma posição estratégica na produção de água porque aqui estão as nascentes das principais bacias que abastecem o país, como a bacia do Tocantins e a bacia do Paraná. São três aquíferos aqui na região do Centro-Oeste. Uma delas que dá origem à nascente do São Francisco. 

Então tudo que se faz na ocupação desse território impacta essa produção de água e impacta esse abastecimento pras principais bacias. Três das maiores bacias nascem por aqui.

Quem resiste a tais pressões? 

A comunidade resiste, né? Foram feitos vários movimentos, como Salve o Urubu. Depois, o último foi em 2022, quando se tentou criar a Unidade de Conservação integral sobre as chácaras e quando também a Terracap retomou a tentativa de implantação do Setor Habitacional Taquari II, ali na região do Urubu, que teve uma resistência muito forte da comunidade. 

Em 2017, no governo Rollemberg (2015-2018), o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) chegou a suspender a licença desse projeto. Mas ele foi retomado. Em 2022, com a associação constituída, conseguimos que o Ministério Público emitisse uma recomendação assinada por seis promotores pedindo que a Terracap refizesse os seus projetos, porque não houve, por exemplo, estudo do impacto ambiental na região. 

Salve o Urubu é o Movimento Permanente de Preservação da Microbacia do Córrego Urubu, lançado em setembro de 2007 por um grupo de moradores da região. 

Quais as perspectivas para o futuro?

Hoje nós sabemos que a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (ADASA) trabalha com o cenário de novo risco de desabastecimento de água em Brasília nos próximos três anos.

Nossa disputa com o governo do GDF é tentar mostrar pra população, pras autoridades, todos que tem poder de interferir nesse processo, nessa discussão da ocupação do território, que não se trata mais de olhar só pro umbigo de Brasília. Nós precisamos pensar em termos nacionais. O que nós estamos fazendo com a caixa d'água do país. 

Quais serão as consequências se nós não conseguirmos preservar o Cerrado? Você sabe que o Cerrado e a Caatinga são os dois únicos biomas que não fazem parte do patrimônio natural protegido pela Constituição. Inclusive tem uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) tramitando no Congresso Nacional para corrigir isso. 

Por não ter essa proteção, o Cerrado tem sido o bioma mais devastado e com isso a gente está chegando num ponto limite perigoso de acabar destruindo os nossos mananciais, nossas nascentes, porque a gente não está prestando atenção nas áreas produtoras de água do Distrito Federal. Porque o GDF, com a sua grande imobiliária que é a Terracap, só pensa em lucro, né? 

A Terracap tem como única fonte de recurso vender patrimônio público. Só que essa terra é uma terra essencialmente produtora de água. E é essa a reflexão que nós precisamos fazer junto aos órgãos de controle e junto ao GDF. 

A população de Brasília não tem ideia da importância que é a proteção desses mananciais. Nós não estamos falando só de Chapada dos Veadeiros, não estamos falando só de Cavalcante, Alto Paraíso ou de Planaltina onde está a Estação Ecológica Águas Emendadas. Estamos falando da Serrinha, dez quilômetros, quinze quilômetros da rodoviária do Plano Piloto. Uma região produtora de água que precisa ser preservada.

Senão nós vamos ficar com o abastecimento muito comprometido.

* A reportagem solicitou um posicionamento da Terracap. Em nota, a empresa afirma que o projeto do Setor Habitacional Taquari etapa II aguarda uma licença ambiental de instalação. "Todos os estudos e projetos da Terracap seguem rigorosamente as diretrizes e legislações urbanísticas e ambientais vigentes. Todas as nascentes serão preservadas pois, por definição, são áreas de preservação permanente (APP), sendo necessária a preservação de uma faixa de 30 a 50 metros destas nascentes, sem construção ou ocupação", diz a autarquia, acrescentando que "o 2º trecho do Taquari não possui nenhuma nascente na sua poligonal, portanto não há loteamento da Terracap próximo às nascentes. Por outro lado, há que se verificar se existem ocupações próximas às nascentes, que por esse motivo seriam consideradas irregulares".

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Edição: Flávia Quirino