Ceará

Plano Diretor

Fortaleza para quem? Construção civil muda a paissagem da cidade

Super prédios descumprem o Plano Diretor de Fortaleza, mas quem tem dinheiro consegue chegar mais alto

Fortaleza, CE |
Maior edificação de Fortaleza terá 50 andares. - Divulgação

Boa parte do charme de Fortaleza passa por sua beira-mar. Mas há décadas, as belezas naturais vem perdendo espaço para os prédios. Hoje desenhada por contornos de concreto, a paisagem segue se transformando com edificações cada vez mais altas. 

Fátima Santos vende coco na Avenida Beira-mar há mais de vinte anos e acompanhou boa parte dessa transformação: “isso é um absurdo, não era para ser autorizado esses prédios enormes. Prédio aqui era pra ter só até quatro, cinco andares. Acaba com as plantas, acaba com o vento, acaba com o bem-estar das pessoas. Você passa lá longe, você não vê mais o mar, só vê pista, asfalto, essas coisas. Antes você passava e via o mar, era a coisa mais linda”, relembra. 

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O motorista de aplicativo Paulo Sérgio morou a vida toda num desses prédios baixinhos, que cederam lugar a uma outra Fortaleza: “tem um lado bom, da modernidade, e tem um lado ruim. Porque assim, o futuro tá sendo dos ricos, e a classe média onde tá ficando nessa história? Ou seja, o futuro vai ser só dos ricos?”, questiona. 

Os novos edifícios, que têm sido chamados de super ou mega prédios, devem elevar ainda mais o paredão em torno da orla, área nobre aqui da capital. Serão prédios de alto padrão acima de 30, 40, 50 andares. Mas essa transformação não fica só lá na orla não, ela se expande por outros bairros, todos em áreas super valorizadas. Com um detalhe: muitas vezes, a altura dos prédios vai contra o que está no plano diretor da cidade, que permite prédios com no máximo 32 andares.

Como é o caso do imponente edifício que agora se destaca, no bairro do Mucuripe. Em fase avançada de construção, ele deverá ser o maior edifício da capital, pelo menos por enquanto. Com 50 andares, o prédio dispõe de 46 apartamentos residenciais. A obra, de 170 metros de altura só foi possível graças a criação da outorga onerosa de alteração de uso, um instrumento jurídico-administrativo que flexibiliza a utilização do solo e permite construções acima dos parâmetros estabelecidos, e quem vem sendo usada cada vez mais. 

Funciona assim: como contrapartida, o construtor paga, em dinheiro, por esse solo “criado” cada vez mais para o alto. O vereador Gabriel Aguiar, que tem acompanhado de perto as discussões sobre a revisão do Plano Diretor de Fortaleza, fala sobre a celeridade e urgência que têm sido dadas a alterações deste tipo. “Enquanto o processo está iniciando, enquanto a gente tá formando a comissão que irá avaliar, organizando a comissão que irá receber o projeto, ele já está sendo aprovado todos os dias na Câmara Municipal de Fortaleza. Desde que eu entrei, então tem 2 anos que chega lá, semana sim, semana não, alterações do plano diretor. Essa outorga onerosa, que estamos conversando, ela chegou no ano passado, só que o processo de alteração do plano diretor começou esse ano, já foi alterado ano passado. Então há um processo bonito pra mostrar de participação e, paralelamente, está sendo fatiado e alterado todos os dias o Plano Diretor, sem qualquer participação social ou debate. Muitas vezes o processo chega 10h da noite do dia anterior e é votado 9h da manhã do dia seguinte”, enfatiza Gabriel.

De acordo com dados da Secretaria do Meio Ambiente de Fortaleza, foram 21 projetos que acionaram a regra, sendo 8 em 2021 e 13 no ano passado. Mais 19 processos estão atualmente tramitando na pasta. 

“Primeira coisa, então pra que existe planejamento urbano?” Questiona o arquiteto e urbanista, Marcelo Capasso. Também pesquisador do Laboratório da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab), Capasso questiona ainda as flexibilizações que acabam desconsiderando diversos fatores importantes: “então eles vão alterando esses indicadores sempre pra mais, né? Pra mais permissivos, sem necessariamente fazer uma projeção entre capacidade e disponibilidade de água pela Cagece, entre a questão, por exemplo, da capacidade da coleta de esgoto, capacidade de drenagem de água pluvial, e aí vão se somando, por exemplo, as questões que não aparecem mais como é a questão de aeração e insolação no ambiente onde os prédios se encontram e a própria questão do tráfego’’. 
 
Léo Suricate é produtor, agitador cultural e militante do MTST. Morador do residencial José Euclides, que até hoje não dispõe de CEP, fala sobre o direito a cidade, que acaba indo de encontro a esses empreendimentos: “daqui a pouco a cidade tá sufocada de tanto prédio alto, de arranha-céu barrando vento”, observa. E complementa: “A cidade vai criando loteamentos bilionários, ao sentido de que as pessoas, a sociedade não vai mais acessar aquele lugar ali da cidade, principalmente quem mora aqui, quem mora aqui então dificilmente consegue sair daqui, nem CEP tem. E aí a gente vive essa mesma cidade, enquanto a prefeitura vende o céu”. 

 O dinheiro pago de contrapartida pelas construtoras vai para o Fundo de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza, o Fundurb, que em 2 anos da atual gestão arrecadou R$174 milhões para liberar 21 super prédios. Dinheiro que deveria ser destinado para áreas mais necessitadas. Mas segundo Gabriel, não é o que tem acontecido, na prática: “ a gente não sabe com o que exatamente está sendo gasto, nem há a participação popular em como ele será gasto. Há uma prerrogativa para a execução do Fundurb que é a criação de um conselho de planejamento urbano, com a participação da sociedade, dos técnicos, dos movimentos urbanísticos que estão pensando de forma crítica à cidade, buscando combater as desigualdades e a falta do direito à cidade. Então sem essas ferramentas, o Fundurb vira apenas mais uma reserva de receita da prefeitura”, defende o vereador. 

Edição: Camila Garcia