Rio Grande do Sul

Comunicação Pública

TVE RS 49 anos: A luta é por continuar existindo

Funcionários da TVE e FM Cultura reafirmam luta contra extinção e defesa do interesse público da Fundação Piratini

A comemoração do aniversário da TVE saiu das telas para ganhar o pátio da Fundação Piratini, no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre - Foto: Clóvis Victória

Eles e elas estão apreensivos e apreensivas. Não poderia ser diferente, ante a situação singular em que estão envolvidos como trabalhadores e trabalhadoras da TVE e Rádio FM Cultura. São empregados(as) em uma empresa pública que, há pouco mais de seis anos, foi extinta na Assembleia Legislativa, mas estão trabalhando firmes, produzindo conteúdo, mantendo o interesse público de seus ofícios e, na quarta-feira (29.03), comemoraram os 49 anos da Fundação Piratini.
 
Durante boa parte do dia, a programação da TVE e FM Cultura aludiu à data que antecede um marco histórico do interesse público em comunicação no RS. Exatamente daqui um ano serão 50 anos de televisão pública nos pagos dos gaúchos e das gaúchas. O “parabéns a você”, ao vivo para os espectadores, é um alento, mas, também, marca uma indefinição nas vidas de quem tem as emissoras públicas como seu sustento e o de suas famílias.

Desde 2015, quando o então governador José Ivo Sartori (MDB) assumiu o governo do Estado, uma nova onda de visão neoliberal de gestão do Estado voltou a ameaçar o patrimônio público. O Plano de Modernização de Sartori não passou da aplicação de um remédio amargo, de um veneno contra instituições públicas que precisavam de revitalização e concurso para seguirem seus relevantes papeis.

O ambiente de 2016 não foi melhor. Da derrubada da presidenta Dilma Rousseff (PT) à Ponte para o Futuro, de Michel Temer (MDB), uma vanguarda de retrocesso culminou com um governo que, no mínimo, confundiu público e privado e, no máximo, escalpelou o estado federal para tirar proveito pessoal disso e ameaçou a democracia com uma tentativa de golpe em 8 de janeiro passado.

Sem Jair Bolsonaro (PL) no comando, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) traz novo alento aos colegas da TVE e FM Cultura. É tempo de abrir espaço para negociar, o que, definitivamente, esteve fora da agenda dos governantes locais desde 2016, assim como do governo federal.


"A comunicação pública é fundamental neste momento de resgate da democracia”, pondera a presidenta do Sindicato de Jornalistas do RS, Laura Santos Rocha / Foto: Clóvis Victória

Salchipão e esperança

A comemoração do aniversário da TVE saiu das telas para ganhar o pátio da Fundação Piratini, no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre. O bolo deu lugar ao proverbial salchipão (assim mesmo, consagrado pela escrita jornalística) e alimenta esperanças. É tempo de pensar em consolidar empregos, negociar e seguir e a luta em defesa do interesse público da comunicação no RS.

“É fundamental investir em comunicação pública de qualidade para a sociedade estar bem-informada, combatendo as notícias falsas e tendo um trabalho de qualidade para entregar para a nossa sociedade. É uma luta que o Sindicato, em seus 80 anos, encabeça há muito tempo. Desde a extinção da Fundação Piratini, batalhamos para que a TVE e a FM Cultura continuem exercendo importante papel de comunicação. A comunicação pública é fundamental neste momento de resgate da democracia”, pondera a presidenta do Sindicato de Jornalistas do RS – SindJoRS, Laura Santos Rocha.

A jornalista e delegada sindical do SindJoRS, funcionária da TVE, Lírian Sifuentes, transmite aquela sensação de estar perto de um bom objetivo, de seguir na luta ante a situação de indecisão quanto ao futuro de todos os(as) colegas. “Completar 49 anos de TVE e ver tão próximo dos 50 anos, esta data tão simbólica, o meio século de TV pública dos gaúchos, mostra o quanto a nossa luta valeu e segue valendo a pena. Seja a luta política desde 2016 para não sermos extintos de fato como queriam os governantes da vez”, detalha.

Para Lírian, a defesa da TVE e da FM Cultura passa pelo respeito à história dos trabalhadores(as) e da própria emissora. “Temos mostrado a nossa resistência e a nossa competência como trabalhadores que, de fato, mantêm a TVE e a FM Cultura vivas. Neste próximo ano, queremos reafirmar a importância da nossa luta e conquistar mais. Porque existir é essencial e a gente quer mais”, salienta.

“Este aqui é um lugar fundamental para cultura, para o jornalismo gaúcho.”

Beto Azevedo, jornalista e ex-dirigente do SindJoRS, costuma referir que o processo de desmonte da Fundação Piratini começou no governo de Germando Rigotto (2003-2007), com o projeto das OSCIPs, organizações que, na verdade, promoviam a terceirização dos serviços prestados às fundações públicas, reduziam custos e aumentavam o controle de quem governa.

Beto foi aprovado no concurso de 2002, durante o governo de Olívio Dutra (1999-2003), e enxerga na resistência a condição de vida atual da TVE e da Rádio FM Cultura. “Tenho uma baita de uma satisfação de estar aqui no grupo de servidores e servidoras da TVE e FM Cultura nesses últimos anos. Com todos esses problemas de pandemia, ela acabou justificando toda a nossa luta de servidores, da classe artística, dos sindicatos, da frente jurídica”, lembrou.

Para Beto Azevedo, a manutenção da Fundação Piratini como uma empresa de interesse público em comunicação significa manter viva a cultura local. “É uma baita alegria ver uma emissora que é tão generosa em abrir caminho para pessoas que estejam iniciando na carreira artística que a pessoa tenha vontade de desenvolver. 49 anos é simbólico. A TVE está viva e ela precisa continuar viva. E nós precisamos sempre manter o máximo de esforço para que ela viva mais 50, mais cem anos. Este aqui é um lugar fundamental para cultura, para o jornalismo gaúcho.”

Janela de oportunidade

O diretor do SindJoRS e autor desta matéria, Clóvis Victória, espera que o atual governo do Estado tenha a sensibilidade de se dispor a negociar e estabelecer uma jornada de debates com as entidades representativas dos trabalhadores e trabalhadoras da TVE e FM Cultura para garantir direitos.

“Os últimos 20 anos de história do governo gaúcho mostra que governadores neoliberais têm trabalhado bastante para acabar com equipamentos públicos. Conhecemos até o modus operandi. Primeiro, dizem que as empresas públicas são caras, que oneram os cofres públicos. Depois, simplesmente vão desmontando e atacando a qualidade dos serviços prestados”, diz o dirigente.

Este sistema de desmonte costuma seguir com a criação do absurdo e discriminatório “quadro em extinção”, segundo o dirigente. A Fundação Piratini é um exemplo clássico do que foi feito com FEE, com CEEE e com outras fundações e empresas públicas nos anos em que governadores privatistas e defensores do estado mínimo governaram.

“A vida profissional dos colegas que hoje sustentam a qualidade e mantêm a TVE e a FM Cultura vivas é um tormento. Não tem previsibilidade. Depois de seis anos de espera por uma decisão judicial, já há relatos de perda de direitos, como vale-refeição e outras questões. O SindJoRS e o governo do estado têm muito a conversar. Penso que temos uma janela de oportunidades para tratar de muitos assuntos que estão pendentes. Com toda essa parafernália tecnológica e as novas plataformas de comunicação digital, ficou mais difícil se comunicar, dada a abrupta e histórica concorrência na esfera pública. Gestores públicos que trabalham para destruir equipamentos de economia criativa, como a TVE e a FM Cultura, estão fadados a desaparecerem, porque correm o risco de serem desconhecidos dos seus eleitores, da cultura local”, finaliza Clóvis.


Mobilização dos servidores da Fundação Piratini para manutenção das emissoras / Foto: Guilherme Santos | Sul21

Três perguntas ao assessor jurídico do Sindjors, o advogado Antônio Carlos Porto Jr

Em que fase está o processo jurídico de extinção da TVE e FM Cultura?

A disputa jurídica contra a tentativa de extinção das Fundações do Estado do Rio Grande do Sul, com a demissão de seus empregados, foi – e está sendo – travada em diversas frentes. Já dura cerca seis anos. Há três principais: na Justiça do Trabalho, no STF e na Justiça Federal.

Na Justiça do Trabalho, até o momento, foi garantido o emprego de boa parte do pessoal. Os processos estão em grau de recurso. Houve a celebração de um acordo provisório garantindo que não haverá demissões até o trânsito em julgados das ações.

No STF, houve de início uma liminar, garantindo a possibilidade de o Estado demitir os empregados das fundações mesmo sem negociação com os sindicatos. Contudo, uma liminar posterior, a Justiça do trabalho considerou parte dos demissíveis como estáveis, o que, novamente, trancou as demissões. A PGE (Procuradoria Geral do Estado) emendou o processo tentando incluir nele esta discussão. O tema não foi apreciado ainda. Na Justiça Federal, há uma ação do MPF onde está vedada a baixa do CNPJ da Fundação Piratini.

Qual, na tua opinião, deve ser a atuação das entidades sindicais e de defesa da TVE e da FM Cultura neste momento?

Seria importante uma solução política, parlamentar, definitiva. Aparentemente, há intenção do Estado em manter as emissoras no ar. Para isso, será preciso conteúdo. Durante a pandemia, a TVE teve papel importante, ajudando os estudantes e professores. Por outro lado, as duas emissoras sempre tiveram – e mantém – um papel relevante, promovendo a cultura e as artes. Vejo duas possibilidades interessantes: manter as emissoras vinculadas à Secretaria de Comunicação ou levá-las para a UERGS. Isso seria objeto de negociação com o Executivo e o Legislativo.

Qual o melhor caminho para preservar o direito dos(as) trabalhadores(as) e manter empregos e o interesse público da comunicação no RS?

A Lei nº 14.982, de 16 de janeiro de 2017, simplesmente, autoriza a extinção das fundações de direito privado do estado e a demissão dos empregados. O fato é que, passados seis anos, as emissoras seguem no ar e boa parte dos empregados não foi demitida. Uma solução política negociada seria, a meu ver, o melhor caminho.

Entenda a história do desmonte e extinção da Fundação Piratini

2007/2011: As emissoras públicas quase foram extintas durante o governo de Yeda Crusius (PSDB). Na época, o Conselho Deliberativo da Fundação Piratini promoveu um encontro regional sobre comunicação pública e televisões públicas, com participação da então presidenta da EBC, a jornalista Tereza Cruvinel.

2009: O governo de Yeda Crusius alegava não dispor de recursos para sustentar o prédio das emissoras, que pertencia ao INSS. O governo estadual deixou claro que não tinha interesse na compra do terreno que hoje abriga a TVE e a FM Cultura. A EBC comprou o prédio em 2009 e permitiu que o Estado do RS, sem custos, mantivesse as emissoras públicas no local. Na época, o imóvel estava avaliado em R$ 4,7 milhões, com aluguel de R$ 24 mil mensais.

7/10/2011: O Governo do Estado, a Fundação Cultural Piratini e a Secretaria de Comunicação e Inclusão Digital (Secom) assinam protocolo de intenções com a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) para articulação de apoio a ações da área de comunicação social. O convênio, assinado pelo governador Tarso Genro (PT), incluía a prestação de serviços de produção jornalística e a utilização do prédio da EBC pela TVE e FM Cultura.

2014: Último concurso realizado para suprir a falta de servidores e na TVE e FM Cultura. O último concurso havia sido realizado pelo governador Olívio Dutra (PT), em 2002. De acordo com o Relatório de Realizações da Gestão 2011-2014 da Fundação Piratini, no período entre 2003 e 2010, foram investidos apenas R$ 515 mil na fundação. Já entre 2011 e 2014, o governo investiu R$ 12 milhões na recuperação e fortalecimento das emissoras públicas.

2014: A TVE passa a produzir e transmitir conteúdo pelo sistema digital. Houve um salto, entre 2011 e 2014, de cinco para 40 retransmissores no estado.

27/3/2015: No aniversário das TVE, o então governador do Estado José Ivo Sartori (MDB, 2015-2019) chegou a desejar “Vida longa à TVE”. Meses depois, no primeiro ano de seu mandato, Sartori anunciaria seu “plano de modernização”, reduzindo secretarias, extinguindo fundações como a FEE (Fundação de Economia e Estatística) e a Fundação Piratini. Começava aqui uma luta histórica que reuniu servidores públicos de fundações e entidades sindicais contra a extinção da comunicação pública no estado.

21/12/2016: A Assembleia Legislativa aprova o projeto de lei (PL) 246/2016, que autoriza a extinção das fundações de Zoobotânica (FZB), Ciência e Tecnologia (Cientec), Economia e Estatística (FEE), Desenvolvimento e Recursos Humanos (FDRH), Piratini (TVE e FM Cultura) e Metroplan. Foram 30 votos favoráveis e 23 contrários. O Plano de Modernização do Estado (PME) prevê a extinção de 9 das 19 fundações, com promessas de economia de R$ 120 milhões por ano. A estrutura e as atividades desenvolvidas pela Fundação Piratini serão assumidas pela Secretaria de Comunicação, que ficaria encarregada de criar um novo modelo de gestão.

1º/12/2017: Funcionários da TVE e FM Cultura entram em greve após a demissão de 14 colegas, pelo governo Sartori, numa espécie de antecipação e pressão para acelerar a extinção.

Junho de 2018: A juíza federal Paula Weber Rosito determinou, em liminar, que o Estado do Rio Grande do Sul não formalizasse a extinção da Fundação Piratini, mantenedora TVE e FM Cultura enquanto a ação inicial não é julgada em definitivo. Segundo a juíza, a extinção poderia provocar um “grave risco ao resultado útil da ação pública”. A decisão foi uma resposta a uma ação do Ministério Público Federal (MPF) que pedia a suspensão dos atos de extinção da fundação e da consequente transferência das emissoras para o controle formal do governo estadual. A decisão não impediu que os servidores fossem remanejados para outras autarquias do estado.

Edição: SindJoRS