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CLDF: Audiência pública discute direitos da população carcerária e denúncias de maus-tratos

Tortura, condições insalubres de higiene e alimentação, e obstrução do contato com a família estiveram em pauta

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Deputado cobrou mais transparência nos dados do sistema prisional do DF para que seja possível atestar a taxa de eficiência da política púbica - Carlos Gandra/CLDF

Mais de mil denúncias de violações no sistema prisional do DF, recebidas pela Comissão nos últimos três anos, motivaram a realização de uma audiência pública para discutir os direitos da população carcerária no Distrito Federal. São frequentes os relatos de maus-tratos, tortura, condições precárias de higiene e alimentação, além da dificuldade de manter contato com a família. 

A audiência pública foi realizada na tarde desta segunda-feira (13) na Câmara Legislativa (CLDF). Presidente da Comissão de Direitos Humanos, o deputado Fábio Félix (PSOL), cobrou mais transparência nos dados e maior incentivo às pesquisas relacionadas ao sistema prisional.

“A gente quer saber quais são as taxas de reincidência. Até para poder calcular a taxa de eficiência de uma política pública que tem uma folha de pagamento razoavelmente cara para o Estado”, explicou. 

Segundo o deputado, é certo que a centralidade da pena privativa de liberdade é a responsabilização pelo crime cometido, mas é importante que a pena também tenha em seu escopo “alguma capacidade pedagógica de gerar reflexão, ressignificação de trajetória, para que a gente possa ter ressocialização de fato”. 

De acordo com o defensor público Felipe Zucchini, a Defensoria Pública do DF aponta que algumas ações são fundamentais para o sucesso na ressocialização de detentos. “Cuidado digno, criação de oportunidades de emprego e estudo, proximidade da família, e controle de vagas nos presídios. Essas são práticas que diminuirão os altos índices de reincidência no Distrito Federal”, pontuou. 

Para o defensor, a violência presente no sistema prisional brasileiro é uma afronta contínua aos direitos humanos e uma “ofensa à democracia, tão ofensiva quanto os atos antidemocráticos de janeiro deste ano”. 

Sistema prisional do DF em números

De acordo com dados da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAPE), apresentados na audiência pela promotora de Justiça do Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional, Vanessa Farias, o sistema penitenciário do DF conta, em março de 2023, com 8.651 vagas para 15.892 presos, além de 1.611 em monitoração eletrônica.

Já o último anuário divulgado pela SEAPE, que apresenta informações mais detalhadas, corresponde ao período de 2020 a 2021, com dados coletados até março de 2021, quando o Centro de Detenção Provisória III (CDP III) ainda não havia sido inaugurado. Segundo o levantamento, naquele período, somando todas as unidades, o sistema prisional do DF contava com 7.885 vagas, mas abrigava uma população carcerária de 16.316 internos, ou seja, 8.431 a mais do que sua capacidade. Isso representa uma superlotação de mais de 100%.

Em relação ao perfil dos internos, o documento aponta que a maior parte (27%) dos internos tem entre 35 e 45 anos, é composta por pardos (51%) e negros (23%) e tem grau de instrução de ensino fundamental incompleto (7.302). 

Ainda segundo o anuário, cada preso no sistema penitenciário do DF representa um custo mensal aproximado de R$ 1.818,75, valor utilizado para custear, entre outras despesas, o vestuário, a alimentação e o material de higiene pessoal e coletivo. 

De acordo com o documento, as refeições oferecida aos internos são “balanceadas, fornecendo carne vermelha, carne suína, frango, peixe, ovos, frutas, verduras cozidas, arroz, feijão, pães, frios e suco” e acompanhadas “pelas nutricionistas das empresas e fiscalizada pela comissão executora dos contratos de alimentação”. Essa descrição, porém, é muito diferente das denúncias recebidas pela Comissão de Direitos Humanos da CLDF, que relatam alimentos estragados e impróprios para o consumo.  

Déficit de policiais penais no DF

A promotora Vanessa Farias destacou ainda que há um déficit de policiais penais no DF. Atualmente, 1.744 policiais atuam no sistema prisional do DF, quando seriam necessários 3.550. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária indica que deve haver uma proporção de 5 policiais penais para cada 5 pessoas privadas de liberdade. 

Segundo Vanessa Farias, para que exista um sistema penitenciário que atenda às diretrizes dos direitos humanos, é necessário “em primeiro lugar, aparelhar o Estado com recursos humanos e materiais, e infelizmente isso é uma causa rejeitada, tanto pela sociedade civil, como pela administração pública”. 

Alimentação e superlotação 

De acordo com a presidenta da Comissão de Assuntos Penitenciários OAB-DF, Adrielle Brendha Macedo, o sistema prisional do DF apresenta hoje duas problemáticas graves, a alimentação e a superlotação, sem excluir outras questões importantes como saúde e visitas íntimas. 

Contratos de prestação de serviços de alimentação apresentados pela advogada apontam que são destinados pouco mais de R$ 11 para custear as quatro refeições diárias de um interno (café, almoço, jantar e lanche). “Com esse valor, como vamos garantir uma alimentação de qualidade para as pessoas institucionalizadas? Isso é praticamente impossível”, questiona. 

Maus-tratos e tortura 

Carolina Barreto Lemos, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, apresentou dados que indicam que o DF figura entre as unidades federativas com maior taxa de encarceramento. São 500 encarcerados a cada 100 mil habitantes, enquanto a média nacional é de 310/100 mil habitantes. Além disso, 83% dos presos no DF são pretos e pardos, diante de uma média nacional de 67%. 

“Essa taxa demonstra a seletividade do nosso sistema penal, porque cometer crimes várias pessoas cometem, ricas, pobres, brancas, pretas, pardas, mas as que são de fato presas sempre têm a mesma cor e vêm do mesmo lugar, das periferias urbanas, pessoas que tiveram pouco acesso às políticas públicas durante as vidas e seguem sem acesso dentro do cárcere e continuam em um processo de marginalização social”, aponta a advogada.

Carolina Barreto relatou, ainda, dificuldades na fiscalização de presídios no Distrito Federal. 

“Quando chegamos para fazer inspeções, somos submetidos a uma portaria que impede a inspeção, mesmo havendo lei federal que garanta nosso trabalho. A gente tem a prerrogativa legal de fazer inspeções não anunciadas, não faz sentido pedirmos autorização. Temos prerrogativa para tirar fotos, mas somos impedidos. Nos impedem de ter conversas reservadas com os detentos. Como os presos vão denunciar as torturas na frente dos torturadores?”, criticou. 

Em fotos apresentadas pela representante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, é possível ver que não há iluminação nas celas, nem descarga nos vasos sanitários. “Isso é indigno, deixa as pessoas humilhadas. A tortura não é só física, ela tem algo de psicológico também, de você submeter a pessoa a uma situação tão indigna que ela tem que dar descarga com a marmita em que ela comeu ou com sacos plásticos”. 


Inspeção realizada em unidade do sistema prisional do DF mostra infraestrutura precária, sem iluminação nem descarga / Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

Segundo Carolina Barreto, também foi possível averiguar a situação precária da alimentação fornecida, que muitas vezes é entregue azeda e com bichos. “A gente estava de máscara, e ainda assim sentimos náuseas com o cheiro da comida”, conta. Além disso, o cardápio previsto nos contratos não é cumprido.


Registros mostram situação precária da alimentação fornecida em presídios do DF / Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

O relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura aponta ainda que há um uso da força muito desproporcional no sistema penal do DF. Os internos sentem medo de conversar com o órgão de fiscalização, mesmo quando os agentes penitenciários não estão presentes, por medo de retaliações. Há relato de punições coletivas, xingamentos e humilhações. 

“Temos casos de pessoas que perderam o globo ocular, que perderam o nariz, por uso de bala de borracha a um metro de distância, sendo que a própria fabricante determina uma distância de 5 a 20 metros para o uso, sempre abaixo da cintura”, afirma a advogada. 

Além disso, há restrição nas visitas íntimas, que estão autorizadas somente para os internos que trabalham, o que representa apenas 20% da população carcerária do DF. As visitas das crianças também estão restritas a ocasiões especiais, o que, segundo Carolina Barros, representa uma violação “inclusive do Estatuto da Criança e do Adolescente”. 

Resposta do governo

O secretário de Administração Penitenciária do DF, Wenderson Souza e Teles, defendeu a gestão de sua pasta. “Tenho humildade para reconhecer que o sistema tem suas mazelas. O orçamento da secretaria é de R$ 496 milhões, sendo que apenas 2 milhões foram para investimento, o restante é custeio”, explicou. 

Wenderson justificou a redução do tempo de visita aos presos, que era de 6 horas e passou para 2 horas, a cada 14 dias, como uma medida para reduzir o tráfico de drogas. “É a priorização da segurança”, afirmou. 

Sobre as visitas íntimas, que agora só são liberadas para detentos selecionados, o secretário disse que “a visita íntima é uma regalia, por isso só é concedida ao interno com comportamento exemplar”. 

Wenderson também disse que o GDF vai melhorar a alimentação oferecida aos detentos nos próximos contratos. “Vamos tentar especificar um contrato melhor para oferecer uma alimentação mais digna. Nosso objetivo é ter uma cozinha em cada unidade nos próximos contratos”, prometeu.

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Edição: Flávia Quirino