No fim de uma manhã dos últimos dias do mês de maio de 2019, os mares turbulentos das incertezas e dúvidas nos alcançaram, eu e minha família. Apesar de já ter uma certeza no meu coração, principalmente a cada visita da Maria Flor nas consultas mensais ao pediatra. Ler o resultado do exame genético me fez virar uma página e começar um novo capítulo, do qual eu não estava preparada. Nem sabia para onde ir.
O mar do diagnóstico de um filho com doença rara não tem ondas calmas. Pelo menos não no início, porque a gente não sabe como navegar e em qual direção pilotar o barco. A maioria das doenças raras não tem cura, são crônicas, progressivas e apenas 5% têm um tratamento disponível. É certo que todos nós somos marinheiros de primeira viagem, mesmo que você tenha filhos anteriormente. Esse mar é algo totalmente novo e será preciso desbravar rotas e encontrar parceiros para que a navegação fique mais tranquila.
Passadas as noites mal dormidas, sentimos uma necessidade imensa de encontrar outros navegantes dessa jornada. Para que nossas experiências sejam luz à outras famílias que também chegarão nesse caminho e possam nos encontrar.
Mas o diagnóstico não é o fim da linha! A vida é bonita seja qual for a raridade do diagnóstico. Precisamos celebrar todos os corpos e a neurodiversidade afinal, somos muitos e somos raros!
A grande maioria das mais de 6 mil doenças raras são causadas por fatores genéticos.
Ou seja, nem adianta ir em busca do porquê aconteceu este “erro” com seu filho. Existem cerca de 300 milhões de pessoas no mundo com alguma condição rara, o que equivale a 5% de toda a população mundial.
Doenças Raras são aquelas que afetam até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, sendo que, 70% das doenças raras genéticas começam na infância. Por isso, a importância do acesso ao diagnóstico precoce não só para se ter qualidade de vida em muitos casos, ele é tempo de vida.
Porém, busca do diagnóstico correto de uma doença rara demora, em média, de 4 a 7 anos. E nessa caminhada chega-se a consultar com até 10 médicos diferentes, sendo que nas regiões Norte e Nordeste do Brasil este número pode dobrar. E aqui incide a escassez de profissionais e do acesso aos exames genéticos de ponta. Muitos não estão disponíveis no SUS e são caríssimos. O diagnóstico precoce contribui para evitar a progressão de comorbidades e melhorar assim, toda a estrutura de vida das pessoas e de suas famílias.
Esses dados são importantes, auxiliam na construção de políticas públicas, chama a atenção de especialistas e cientistas no mundo todo para nos ajudar, como um farol nesse mar. Comecei a perceber que fazer essa pesquisa sobre doenças raras, lá em 2019, para entender minha filha, me colocou diante de outras pessoas e famílias com o mesmo medo, tristeza e coragem para desbravar esse mar. Eu não estava mais só!
É preciso também, humanizar esses dados.
O nome da minha filha é Maria Flor. Comecei sentir as dores do parto no início da tarde, mas ela fez questão de esperar o amanhecer do outro dia para chegar ao mundo. E há 6 anos íamos ao seu encontro. Hoje entendo o porquê dela ter esperado o nascer do sol: pra trazer consigo um pouquinho do aconchego e da mágica desse astro.
É nítido a intimidade que ela tem com o sol. Ela é uma criança com múltiplas deficiências, foi diagnosticada com a síndrome rara Pitt-Hopkins, uma doença neurogenética que afeta o gene TCF4 no cromossomo 18, caracterizada por atraso global do desenvolvimento, podendo apresentar problemas respiratórios, convulsões, constipação crônica, ausência de fala. E associado a essa condição genética, também é autista.
Eu fui descobrindo tudo isso com muito esforço, persistência, dias de choro, medo do desconhecido. A busca pelo diagnóstico mereceria um outro artigo, pois custou uma batalha jurídica com planos de saúde. Essa é uma outra saga entre consultas, terapias, diferentes alternativas e novos procedimentos.
O Brasil precisa ampliar ainda mais as normativas e efetividade das resoluções existentes a cerca das doenças raras, que garantam a cidadania plena desse grupo vulnerável social e historicamente.
Na verdade, o mar que trago como metáfora me transformou e transformou a vida da minha filha rara em grandes lutas.
Olhando para esse mar, para esses números e para nossos filhos não podemos deixar de olhar para quem cuida das pessoas com doenças raras.
Maternidade atípica
Então, é importante trazer a relação de recorte de gênero, já que 70% a 80% dos pais abandonam o lar depois que descobrem o filho, ou a filha com uma doença rara. Este é um dos motivos de nós, mulheres mães de raros serem, essencialmente as cuidadoras das pessoas com doenças raras.
A maternidade atípica e rara e o ativismo andam lado a lado. Ser mãe da Maria Flor, me mostrou muitas vezes que só conseguimos mudar minimamente algo através da ação.
Ser ativista não foi bem uma escolha, mas uma necessidade de luta para que minha filha exista e resista. Lutar para que a maternidade atípica e suas intersecções possam ser vistas e valorizadas, para que a vozes dos nossos filhos sejam ouvidas! Essa luta implica sofrer ataques, exaustão, ansiedade, sensação de impotência, um peso de responsabilidades e expectativas. E um cérebro que nunca para!
Tudo se agrava diante do fato de vivermos numa sociedade capacitista, na qual querem consertar, curar, medicar e excluir a pessoa com deficiência. Nossa sociedade atribui valor a quem é “normal” e os “outros” fora de padrões, não capazes de estar, pertencer e participar de espaços e ambientes hegemônicos e normativos.
Ser mãe de uma menina com doença rara é defender diariamente minha filha enquanto sujeita de direitos, como qualquer outra. Sigo lutando contra a sua desumanização e pela inclusão.
A maternidade atípica ativista reconfigura o cuidado como um lugar político.
No mês das doenças raras convidamos a sociedade e poder público, a olharem e iluminarem com garantia de direitos, cidadania, respeito, solidariedade, atenção e empatia as mais de 300 milhões de pessoas que tem uma doença ou síndrome rara no mundo. Esse texto é sobretudo por uma luta anticapacitista.
E pra finalizar vou citar a grande Adriana Dias, figura essencial na luta em prol das pessoas com doenças raras e direitos humanos, que partiu recentemente mas nos deixou um grande legado:
“Qualquer política pública pensada para todos provavelmente não alcançará as pessoas mais vulneráveis. Mas a política pública pensada para e com as pessoas mais vulneráveis, essa sim será capaz de modificar a vida de todas”.
*Andréa Medrado é mãe e ativista pelos Direitos das Pessoas com Deficiência (PcD) e doenças raras, membra da Pitt-Hopkins Brasil.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino