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Em tempos de mito, um pouco da história de Evita

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Em 17 de outubro a Argentina comemora o Dia da Lealdade peronista - Arquivo
Conhecer a história do corpo de Evita nos faz conhecer os contornos do patriarcado

Antes de iniciar a leitura, um aviso importante: o texto trata de temas sensíveis, como abuso sexual.

Mito: ícone histórico, crença construída sobre alguém, modo idealizado de pensar um momento passado, ocorrência extraordinária geralmente deturpada. Essas são algumas definições oferecidas pelo dicionário para conceituar a ideia de mito.

Na prática, a gente vê mitos se construírem (as vezes autoconstruírem) a partir das mais variadas facetas, a mais comum no Brasil de hoje é a do homem viril, imbrochável, que ‘honrou’ sua biografia fazendo parte das Forças Armadas (ainda que tenha sido expulso da corporação), com zelo pela família tradicional (todas as três que constituiu).

Este texto não é sobre tal (suposto) mito.

É sobre a faceta que a imagem mítica assume, faceta implacavelmente ligada às características que dão estrutura a um ser: o mito homem é viril, a mulher mito é santa, como Santa Evita, série argentina disponível há pouco tempo no Star+.

Com sete episódios, a produção baseia-se no livro homônimo de Tomás Eloy Martinez, de 1995, que por meio do gênero do romance, reconta a história de um mito político argentino: Eva Duarte de Perón. A série conta com breves passagens que retratam a biografia em vida de Eva, sua chegada em Buenos Aires ainda muito jovem, o sonho de ser atriz, a relação afetiva com Juan Domingo Perón e sua atuação política junto aos ‘descamisados’ – maneira como é chamada a classe operária argentina. Mas, é sobretudo no itinerário complicado de seu cadáver sequestrado que a história se centra.

Na série, por um lado, encena-se o que de fato ocorreu: o embalsamamento do corpo prematuramente morto de Evita em decorrência de um câncer, aos 33 anos, quando a população clamava pela fórmula Perón, presidente e Eva, vice no ano de 1952. Por outro lado, o diretor Rodrigo Garcia carrega nos tons de fantasia ao retomar a narrativa de Martinez e encenar a história não de um, mas de três corpos idênticos (um real e duas réplicas): na trama, após a derrocada de Perón por um golpe de Estado orquestrado pelas altas cúpulas militares, cada corpo teria um destino para despistar a legião de gente que sustentava a ideia de Evita como líder espiritual da nação.

O que se vê adiante, na narrativa ficcional – e, também, nos relatos sobre por onde esteve o corpo de Eva nos mais de 20 anos que separam a ocasião de sua morte ao enterramento de seus remanescentes - é uma sucessão de disputas ao redor do cadáver, envolvendo desde os projetos peronistas de tratá-la como símbolo político, que teria um monumento faraônico para depositar seu corpo, até o pavor dos militares golpistas, que decidiram transformar o sequestro de seus remanescentes em um caso de segredo de Estado.


Santa Evita é uma série argentina / Divulgação

Segundo nos conta o documentário Evita, la tumba sin paz (1997, Tristán Bauer), logo depois do golpe sob alegação de perplexidade frente a um corpo tão conservado, a cúpula militar convocou um grupo de médicos que realizaram exames de verificação para atestarem que se tratava realmente de Eva Duarte de Perón. As averiguações incluíram a retirada de tecido da orelha e de um dedo para checagem da digital, além de radiografias e outras modalidades de manipulação.

Pouco depois, o corpo foi roubado da sede do Confederação Geral do Trabalho (CGT) - onde esteve por dois anos sob os cuidados do médico que fez os procedimentos de embalsamamento – pela Marinha. Primeiramente ficou a cargo do tenente coronel Moori-Köening, um tipo conhecido por abusar de álcool e chamar o corpo embalsamado de Eva de “minha mulher”, além de praticar “atos não cristãos” com o cadáver, segundo declarações do oficial que recebeu a tarefa de dar destino ao caixão, após o presidente Aramburo retirar Moori-Köening do caso. Entrou em cena, então, o tenente coronel Cabanillas que levou o corpo de Eva para a Itália sob nome falso, em 1957, cinco anos após sua morte.

Talvez por opção estética ou outra razão, a narrativa de Garcia não explora profundamente as disputas que estiveram colocadas no contexto de desaparecimento do corpo de Eva, restringindo-se às angústias, crises e ameaças vividas pelos personagens mais diretamente implicados na ação de dar sumiço ao cadáver.

Na história real, consta que além do sumiço do corpo, os golpistas então no poder instauraram outras políticas visando estabelecer o esquecimento não apenas do antigo presidente Perón, naquele momento exilado na Espanha, mas especialmente do legado construído em torno de sua figura e da figura de Eva, o peronismo.

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Livros e imagens foram proibidos, porém, prova de que o plano não vigorou foi o sequestro do ex-presidente Aramburo em maio de 1970 e sua consequente condenação à execução sob o argumento de que fora o responsável por sumir com o corpo de Evita, além de executar militantes peronistas. Tais acontecimentos são retratados com maestria estética em Eva no duerme (2015, Pablo Aguero).

Em 1971, quando a ditadura estava em crise, o corpo de Evita foi usado como barganha política pelo militar, então na presidência, Lanusse, que desejava negociar com Perón, ainda exilado. O corpo embalsamado foi recebido em Madri pelo viúvo, agora casado com Isabel Perón no dia 03 de setembro daquele ano e lá permaneceu mesmo quando Juan Domingo retornou a Buenos Aires, em 1973. O corpo apresentava severas marcas na região do rosto, provavelmente resultantes de fortes golpes ou pressões, segundo conta o restaurador Domingos Tellechea, chamado a se ocupar da difícil tarefa de reparar os danos ocasionados.


Eva Perón vota pela primeira e última vez, em 1951, internada em um hospital em Avellaneda. / Arquivo

As irmãs de Eva, no entanto, usam as palavras “mutilada” e “destroçada” para descrever o estado em que se encontrava: além do rosto, os pés estavam escoriados provavelmente por ter sido mantida em posição vertical, além de outros sinais os quais, segundo o relato das irmãs, afirmam ser melhor nem mencionar.

A morte de Perón, 10 meses depois de assumir o terceiro mandato, resultou na presidência sangrenta de Isabelita, ao lado López Rega – fundados da Aliança Argentina Anticomunista – Triple A. Nesse momento, a organização peronista revolucionária Montoneros sequestrou o cadáver de Aramburo e exigiu, em troca, o retorno do corpo de Evita à Argentina. É só então que se dá seu retorno e exibição de seu caixão ao lado do de Perón. O enterramento acontece somente após o golpe de Estado de 1976, quando a Junta Militar finalmente a entrega a sua família. No jazigo das Duarte que fica no cemitério da Recoleta, Eva foi enterrada a oito metros de profundidade para que não houvesse novas tentativas de sequestro de seus remanescentes.

Evas

Santa Evita chega às telas das casas argentinas e latino-americanas após uma forte divulgação e uma longa tradição de Evas, representadas por diferentes atrizes, em diferentes momentos e retratando diferentes versões de sua vida: a Eva contundente de Esther Góris (Argentina, 1996), com discursos políticos inflamados e bem concatenados ou a Eva voluptuosa e frívola de Madonna (Estados Unidos, 1996) em um musical que muito explorou as parcerias sexuais de Evita antes de Perón e nada criticou o fato de uma menina de pouco mais de 15 anos recém chegada a Buenos Aires e sozinha ser arrastada a uma lógica de sobrevivência que, espantem-se (contém ironia!), dependeu desse tipo de subterfúgio. Na recente minissérie, a Eva de Natalia Oreiro é aquela que morre e, mesmo depois disso, tem seu corpo perseguido, disputado e invadido.

Em tempos em que corpos masculinos são mitificados em vida como sendo imbrocháveis e em morte, tal qual o coração de Dom Pedro – um monarca colonizador estrangeiro que é ovacionado por parte da sociedade como símbolo da independência –, conhecer a história do corpo de Evita nos faz conhecer os contornos do patriarcado.

Assim como escreve Tracy Figg quando da notícia de um anestesista abusador de mulheres em mesas de cirurgia: “No necrotério depois de mortas [...] Nem todo homem, mas sempre um homem”. A série é eficaz em mostrar que nem a condição de mito-símbolo-líder espiritual nos invalida a condição de mulher no patriarcado.

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*Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, vinculada ao Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires. É editora e colunista do site História da Ditadura e pesquisa temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino