Cuidado em liberdade

18 de maio: o que é e quais são os desafios atuais da luta antimanicomial?

Com mais de três décadas de existência, o movimento pelo fim dos manicômios vai às ruas em contexto de fortes ataques

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Portaria assinada pelo golpista Michel Temer cortou os avanços dos últimos 30 anos na área da saúde mental
Portaria assinada pelo golpista Michel Temer cortou os avanços dos últimos 30 anos na área da saúde mental - Reprodução

Nesta quarta-feira (18) se comemora o dia nacional da luta antimanicomial, com manifestações e atividades marcadas por todo o Brasil.  

Defendendo que cuidado se faz em liberdade, os movimentos que lutam pelos direitos das pessoas com sofrimento mental tomaram corpo no país a partir da década de 1970. Foram formados, em sua maioria, por trabalhadores e sindicalistas, pessoas que passaram por internações psiquiátricas e seus familiares organizados. 

Em 1987 um encontro de trabalhadores da saúde mental aconteceu na cidade paulista de Bauru. Foi ali que se definiu que haveria um dia nacional de lutas e que se discutiram as bases de uma proposta de reforma no sistema psiquiátrico brasileiro. 

“O manicômio é expressão de uma estrutura presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres”, caracteriza o Manifesto de Bauru, documento do evento de 1987, considerado um dos marcos fundantes da luta antimanicomial brasileira.

“Lutar pelos direitos dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”, defende o manifesto. 

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Psicólogo, psicanalista e diretor do Desinstitute, uma Organização da Sociedade Civil (OSC), Lúcio Costa explica que a luta antimanicomial “não fala só de cuidado, mas também aponta que determinados procedimentos que, em especial antigamente, eram considerados procedimentos médicos, são violência, tortura e segregação. Em nada podem ser comparados com qualquer conceito de saúde ou diretriz de cuidado”.   

A transição para o cuidado em liberdade 

O cenário das políticas públicas de saúde mental - que durante ao menos dois séculos era de hospícios funcionando sob a lógica da internação e exclusão prolongada de pessoas rotuladas como loucas - é transformado no Brasil principalmente a partir de 2001.  

Nesse ano é aprovada a Lei 10.216, também chamada de Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma Psiquiátrica. Ela determinou que a política de saúde mental no país passasse por uma transição, com o fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), oferecendo serviços abertos, comunitários e territorializados. 

De acordo com o Desinstitute, na década de 1980 havia no Brasil cerca de 100 mil leitos em hospitais psiquiátricos, também chamados de hospícios ou manicômios. Com a aplicação da Reforma Psiquiátrica a partir de 2001 e o desenvolvimento da RAPS, que tem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como seu serviço mais conhecido, esses leitos foram sendo gradativamente fechados. Atualmente existem 13 mil no país. 

Depois do avanço, os passos para trás 

Mas ao longo da última década, mais precisamente desde 2011, o avanço da perspectiva antimanicomial enquanto política de saúde mental oferecida pelo Estado sofre abalos.  

Naquele ano, sob gestão de Dilma Rousseff (PT), as Comunidades Terapêuticas - instituições privadas de internação de usuários de drogas, em sua maioria religiosas - são incluídas nas normativas legais e passam a receber financiamento público.  

A partir de 2016, depois do impeachment, ao longo do governo de Michel Temer (MDB) e, em seguida, de forma ainda mais intensificada desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a presidência, uma série de medidas estão sendo tomadas pelo governo federal no caminho inverso ao da reforma psiquiátrica.  

“No final de 2017 uma portaria incluiu hospitais psiquiátricos no centro da Rede de Atenção Psicossocial, isso era algo impensável antes”, critica Lúcio Costa. 

De acordo com uma pesquisa lançada neste mês de maio pela Conectas Direitos Humanos e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entre 2017 e 2020 o investimento federal em Comunidades Terapêuticas chegou a R$ 560 milhões.  

Além disso, em 2021 foi aprovada a Lei Complementar 187. A partir daí, essas entidades passaram a ter o direito de receber imunidade tributária.   

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Em 22 de março deste ano, o Ministério da Saúde revogou, por meio da portaria 596, o custeio mensal do Programa de Desinstitucionalização, voltado para a reinserção social de pessoas internadas há mais de um ano em hospitais psiquiátricos.  

Na semana seguinte, o Ministério da Cidadania publicou um edital com incentivos que somam R$ 10 milhões para financiar projetos nos mesmos hospitais psiquiátricos que o programa anterior pretendia esvaziar.  

“Cenário de barbárie” 

Lúcio Costa atuou como perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Lá coordenou, em 2017, uma inspeção nacional em hospitais psiquiátricos em 11 estados brasileiros. “Barbárie é a melhor palavra que define essas instituições”, destaca. 

“Encontramos pessoas privadas de sua liberdade por longos anos. Eu conheci um senhor que estava dentro do hospital havia 60 anos. Encontramos indícios graves de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante”, expõe Lúcio.  

A camisa de força tradicional que vem à mente, aquela que cruza e amarra os braços da pessoa para trás, não é mais usada. A inspeção, no entanto, se deparou com uma nova modalidade. “São gessos em formato de camisa, que imobilizam todo o tronco da pessoa, inclusive os braços”, denuncia Costa.  

De interno à ativista e escritor 

Roque Júnior, diagnosticado com bipolaridade, passou por oito internações em hospitais psiquiátricos entre 1990 e 2007. Atualmente usuário de serviços da rede substitutiva de saúde mental, como o CAPS, Júnior integra o Fórum Gaúcho de Saúde Mental e a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila). Se apresenta, também, como companheiro da Martha e avô de Pedro.  

Em liberdade, cursou metade dos cursos de sociologia e história e desenvolveu sua habilidade literária. Escritor e editor, Roque Júnior é autor de nada menos que 65 livros publicados.  

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“Hoje vivemos um retrocesso, mas seguimos com atividades ótimas”, avalia, citando que no CAPS que frequenta são desenvolvidas atividades de redução de danos e um Grupo de Gestão Autônoma de Medicamentos.  

“Também quero citar o CAPS III, que é 24h. Se passarem por um momento de crise, as pessoas podem ficar lá alguns dias, até passar a crise, sem precisarem se internar num manicômio ou numa Comunidade Terapêutica”, expõe.  

Hoje

Nas avaliações de Roque e Lúcio, o avanço da luta antimanicomial nos últimos 30 anos foi imenso. “Fechamos quase 90% dos leitos em psiquiatria no país, construímos uma Rede de Atenção Psicossocial significativa a ponto de, na década de 2000, a Organização Mundial da Saúde reconhecer a política de saúde mental no Brasil como exemplar para o mundo”, argumenta o psicólogo. 

“Ocorre que os grupos econômicos que defendem o manicômio nunca saíram do cenário e não foram derrotados enquanto concepção”, avalia.  

Roque Júnior afirma que, desde 2016, a luta contra os manicômios sofre ataques “praticamente a cada semana”. Por outro lado, pondera, “a saúde antimanicomial, em liberdade, segue sendo o norte da atuação da maior parte das pessoas e entidades”. Nesse contexto, chega mais um 18 de maio.  

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Edição: Rodrigo Durão Coelho