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Existe amor em BSB?

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"O que deveria ser um direito de todos parece mesmo um lindo e moderno capricho de Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa" - Foto: Renato Araújo/Agência Brasília
Como tudo que parece um sonho Brasília tem mesmo algo de irreal

A bela canção escrita por Criolo “Não existe amor em SP” é um testemunho melancólico, ácido e direto sobre a ausência de amor na nossa maior cidade. Quem a visita consegue entender alguns dos traços que potencialmente inspiraram o rapper ao compará-la com um buquê de flores mortas, cheia de ganância, vaidade e almas vazias.

É também tomado de certa melancolia e um bocado de crítica, mas sem a verve de um artista, que também consigo enxergar certos paralelos com nossa capital federal.

Existe amor em BsB?

A rima das siglas foi o ponto de partida para a reflexão de uma cidade cuja complexidade cada vez mais salta aos olhos. Compartilho com vocês o meu testemunho de um morador de Brasília que por aqui desembarcou em 2015 vindo da ensolarada capital cearense. Ou seja, a história de muitos que hoje moram no quadradinho.

Minha experiência com a cidade é de alguém que aqui chegou com a vantagem de ser um migrante com emprego estável e que por opção decidiu comprometer parte importante da renda para firmar moradia no cobiçado Plano Piloto, centro da capital, mas de que de modo algum resume a cidade e suas dezenas de regiões administrativas. Seja em Planaltina ou em Ceilândia, certamente podemos encontrar experiências múltiplas, diversas e até mesmo contraditórias frente às críticas que lançarei adiante.

A sensação de qualquer cidadão que conhece minimamente a realidade das grandes cidades brasileiras é a de realmente estar numa cidade diferenciada, pelo menos na área tombada. Viver numa cidade parque, cercada de muito verde, com uma gama considerável de serviços públicos, oferta cultural, maior equidade social e baixo índice de criminalidade é algo que no Brasil parece mais um sonho do que uma realidade.

O que deveria ser um direito de todos parece mesmo um lindo e moderno capricho de Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.

Eu fui e continuo sendo impactado por sua qualidade de vida, sua arquitetura e a calmaria da vida numa cidade monumento. Porém, como tudo que parece um sonho Brasília tem mesmo algo de irreal. Não se demora muito a perceber que na cidade planejada desenvolveu-se uma sociabilidade muito particular nas ruas que não são ruas, nas localidades onde abundam siglas e números.

No Plano Piloto, terra dos funcionários públicos, as pessoas têm como sobrenome a instituição/órgão que trabalham. Logo, temos a Rafaela do STJ, o João da Embrapa, a Tamires do Senado e o Juscelino da UnB. A instituição passa a ser uma pista sobre o seu holerite e, portanto, sobre quem você é, seu potencial de consumo e os lugares e experiências que você pode compartilhar.

Muitos que aqui chegam comentam sobre a dificuldade de constituir laços de amizade sobretudo por ser uma missão quase impossível adentrar em círculos longamente constituídos nos pilotis, blocos, quadras e instituições. Em Brasília você está sempre se apresentando para as mesmas pessoas, pois todo dia você pode ser perfeitamente visto como um completo desconhecido. É uma experiência bizarra mas que demonstra bem o modo blasé como muitos se relacionam.

A vida numa cidade parque pode ser mesmo uma calmaria inebriante, tanto que muitas das práticas que dão vida ao Plano, como a circulação de gente, o contato, a conversa, a boemia é aterrada pela lei do silêncio. É como se os importantes moradores estabelecem um prazo para uma cidade ser cidade, ou seja, só até as 22 horas. Depois disso qualquer barulho mundano pode ser reprimido e ai de quem possa questionar já que por ser um lugar de notáveis há sempre a possibilidade da carteirada, de discutir com um juiz, um senador, com alguém que conhece alguém do tribunal x ou y.

No Plano Piloto parece que vivemos num grande condomínio cujo síndico tem o controle fervoroso. Numa brincadeira com as escalas de Lúcio Costa é como se a escala bucólica tivesse engolido por inteiro a escala gregária, a escala residencial...e a escala monumental...bem essa foi tomada pela ganância e vaidade há muito tempo.

A experiência de uma cidade é muito influenciada também pelo corpo.

Nesse quesito, a melanina que habita em mim define muitas das situações vivenciadas no plano piloto. Em muitos bares (mesmo os LGBTQ), restaurantes, supermercados e shoppings sou costumeiramente lembrado pelos clientes que eu não posso ser cliente. Por isso, é muito comum ser indagado sobre os preços das coisas, enfim, se trabalho no lugar.

Ser preto e ser cliente é como bugar o cérebro da branquitude e em Brasília, infelizmente, também é assim que funciona.

O Plano Piloto com sua metáfora da ilha da prosperidade cria a ilusão de que não vivemos no Brasil.

Caso a leitora ou o leitor seja brasiliense e tenha se sentido triste com minhas palavras justamente no aniversário da cidade, fique tranquilo(a) pois você poderá sempre colocar a culpa nos milhares de brasileiros de muitas regiões que por aqui aportaram e criaram esse caldo cultural, azedo para uns, doce para outros.

Se Brasília é uma síntese do Brasil, essa síntese está dando certo?

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*Juscelino Bezerra é geógrafo, doutor em Geografia e professor na Universidade de Brasília

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino