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Hugo Rodas e a formação da tradição do teatro candango

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Rodas era versátil, trabalhava tanto com atores profissionais quanto com elencos principiantes, desenvolvia experimentos potentes resultantes de oficinas curtas - Foto: Diego Bresani
Rodas foi um pivô constituinte da formação desta engrenagem no teatro produzido no Distrito Federal

Quinta-feira, 14 de abril de 2022: o dia em que Hugo Rodas foi velado. Encontros, lágrimas, tristeza e alegria, partilha, festa, celebração.

Parte expressiva do segmento artístico do Distrito Federal foi até o teatro Galpão, no espaço cultural Renato Russo, da 508 sul, para reverenciar o mestre. Passaram por lá atrizes, atores, estudantes, professoras e professores da Universidade de Brasília (UnB), do Dulcina, da Secretaria de Educação do DF, artistas plásticas, palhaços, a reitora e outras autoridades da UnB, a presidenta da Fiocruz e a diretora da Fiocruz DF, jornalistas, parlamentares federais e distritais.

Nos depoimentos que eu e o produtor e cineasta Maurício Neves colhemos para a UnBTV, Hugo Rodas foi lembrado como um marco divisor na história artística de Brasília, como alguém responsável por estabelecer a base estética da contestação e da ousadia na capital federal, como a principal influência para muitas atrizes, atores, professoras e professores da UnB, como um mestre que formou gerações de profissionais do teatro na capital do país.

É exaltado também por seu talento em diversas linguagens artísticas, o que lhe permitiu desempenhar diversas funções do fazer teatral – diretor, ator, cantor, músico, bailarino, coreógrafo, cenógrafo, figurinista –  e o consolidou como um dos principais diretores da cena contemporânea brasileira.

Uma tradição teatral se forma quando as relações de complementariedade do sistema teatral amadurecem e adquirem um grau de expressão particular em diálogo maduro com tendências externas. Os pólos do sistema teatral compreendem autores, obras, encenações e público.

Hugo Rodas foi um pivô constituinte da formação desta engrenagem no teatro produzido no Distrito Federal, que circulou pelo Brasil em circuitos profissionais e do teatro universitário.

Um aspecto importante a destacar é a origem uruguaia e a formação estética ampla e profunda que Rodas recebeu no âmbito familiar e no movimento de teatro independente da capital uruguaia na década de 1960, que Hugo Rodas se envolveu ao integrar o elenco do Teatro Circular, e participar dos processos formativos da Escola-Teatro da companhia.

De acordo com a pesquisadora Cláudia Moreira Souza, na dissertação “O Garoto de Juan Lacaze: Invenção no teatro de Hugo Rodas” (2007, p. 31): “A diversidade da cena de Montevidéu causa uma profunda impressão em Hugo Rodas e é parte integrante de sua formação artística. Ao tempo em que era possível prestigiar os grandes nomes do teatro europeu, também estavam disponíveis as montagens da Comedia Nacional e as experimentações de linguagens e modos de produção propostas pelo movimento do teatro independente”.

Por sinal, as influências recíprocas do teatro brasileiro com os países vizinhos são ainda tema pouco conhecido nos estudos teatrais. Entre as décadas de 1950 e 1970 o grau de integração dos coletivos, por meio dos encontros em festivais, foi crescente, e durante a ditadura alguns dos principais grupos, por meio de seus diretores, chegaram a criar a Frente de Trabalhadores da Cultura Nuestra América, como ação de resistência ao ciclo de ditaduras na América do Sul e ao imperialismo.

Influências recíprocas

No caso de Hugo Rodas, a nova capital federal estava debutando quando o artista decide aqui fixar residência. Chegou quando o período repressivo e da censura estava no auge no Uruguai, enquanto, no Brasil, a ditadura terminava de exterminar os movimentos de resistência armada contra o regime autoritário, e investia na criação de estruturas estatais, como a Embrafilme, o Serviço Nacional de Teatro, o Serviço Nacional do Livro.

O primeiro de muitos prêmios de Rodas no Brasil é, inclusive, concedido pelo Serviço Nacional de Teatro, de melhor espetáculo infantil, com a montagem de “Os Saltimbancos” (1977).

Sua presença contribuiu para o fortalecimento do caráter contestador do nascente teatro da capital brasileira frente à ditadura.

Da formação no Uruguai, Hugo Rodas traz também para Brasília seu espírito de grupo. No site da Agrupação Teatral Amacaca, último grupo que ele dirigiu, essa característica é destacada: “Huguito tem uma trajetória ligada a coletivos e parcerias. Nos anos 1970 e 1980, dirigiu o Grupo Pitú e, também nessa época, vieram as primeiras experiências com Antônio Abujamra, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e com José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina.

Nos anos 1990, foi a vez das parcerias artísticas com o Teatro Universitário Candango (Tucan) e a Companhia dos Sonhos. Em seguida, na década de 2000, surgiu a Agrupação Teatral Amacaca (ATA), sua mais recente trupe”.

Rodas era versátil, trabalhava tanto com atores profissionais quanto com elencos principiantes, desenvolvia experimentos potentes resultantes de oficinas curtas.

Cida Almeida registra sua impressão do trabalho dele em “O olho da fechadura”, por ocasião da montagem em Goiânia: “Hugo Rodas é um desses camaradas que transpiram talento em tudo que tocam, e deixam marcas. Pega um bando de atores principiantes, sem texto e apenas com o fio de uma ideia tece surpreendentes visões de mundo, algumas deliciosamente desconcertantes. Ele desconstrói a linearidade da maioria e constrói com linhas tortas novas possibilidades do olhar. E isso em pouquíssimo tempo”.

Foi numa dessas ocasiões que tive a oportunidade de trabalhar com ele, numa intervenção que Rodas dirigiu na UnB, na ocasião dos quarenta anos da ditadura iniciada em 1964, no Brasil. Rodas dirigia o elenco conjugando a parte musical, a parte coreográfica, extraindo potência cênica de um grupo de estudantes iniciantes, interessados em se manifestar politicamente por meio da ação teatral.

Hugo era generoso, se abria para experimentos, e a despeito da fama de rigoroso e temperamental, sabia ser carinhoso, afetivo, e sempre se dispôs ao desafio de encenar em espaços públicos, com elencos massivos.

Artista total

Era esse o planejamento que ele desenvolvia na comissão dos 60 anos da UnB, em 2022: seria o diretor de uma grande ação pública da universidade na Esplanada dos Ministérios, na praça do Museu da República, no mês de abril, quando Brasília faz 62 anos e a UnB se torna sexagenária.

Ele concebeu a disposição das tendas em forma de pétalas de uma flor, e com muito entusiasmo compartilhava com os demais integrantes da comissão suas propostas e a alegria de poder participar ativamente deste momento, envolvendo o coro de seu elenco, com as músicas do espetáculo “Os Saltimbancos”. 

Hugo Rodas foi um artista total, reconhecido em vida com muitos prêmios, homenagens, registros audiovisuais de seu trabalho, como o ótimo documentário “Palco dos sonhos: na companhia de Hugo Rodas”, de Isabel Bundchen e Marina Simon. Pesquisas acadêmicas registram com rigor e qualidade o trabalho de Hugo Rodas.

Um exemplo é a dissertação recém defendida, de Santiago Machado Dellape, “Rinocerontes: estudo para teatro filmado em 3 vídeos e 4 quadros” no programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UnB, sob orientação do professor Marcus Mota, um dos principais responsáveis pelo registro do valor histórico e estético do trabalho de Hugo Rodas.

Rodas propôs um brinde na comemoração que dirigiria da UnB na Esplanada. Que possamos brindar, em muitas ocasiões, a rica existência e o legado que ele nos deixa. Um brinde a você, Hugo Rodas!

Para saber mais

O Garoto de Juan Lacaze: Invenção no teatro de Hugo Rodas. Brasília, Instituto de Artes, UNB, 2007. Dissertação de mestrado de Cláudia Moreira Souza. Orientação Marcus Mota.

Documentário “Palco dos sonhos: na companhia de Hugo Rodas” de Isabel Bundchen e Marina Simon.

Página do Coletivo Agrupação Teatral Amacaca.

Um furacão chamado Hugo Rodas, por Cida Almeida.

Homenagem da UnBTV.

Programa Diálogos, da UnBTV “Hugo Rodas conta trajetória na UnB”.

Hugos Rodas em #Minha Brasília 60 Candangos.

Programa Arte de Artista de Aderbal Freire Filho com Hugo Rodas.

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*Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino