26 anos

"Carajás não foi fato isolado, foi um marco para continuidade de outros massacres", diz Ripper

O fotógrafo João Roberto Ripper documentou o Massacre de Eldorado do Carajás, um dos marcos da violência no campo

Ouça o áudio:

Massacre de Eldorado do Carajás completa 26 anos no próximo dia 17 e segue como símbolo de impunidade no campo - João Roberto Ripper
O Estado promoveu uma chacina, interrompendo sonhos de homens e mulheres que ali estavam

No dia 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados pela Polícia Militar do Pará no episódio que ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás. Mais duas pessoas perderam a vida por conta da ação policial, totalizando 21 mortes e dezenas de pessoas feridas. As que sobreviveram trazem na memória as imagens do terror daquele dia. 

Leia também: Tensão, engajamento e modernidade: livro traz história da expansão do MST na rota Sul-Nordeste

Continua após publicidade

Imagem na memória

As famílias do então Acampamento Formosa deram início a uma grande marcha rumo à Belém para reivindicar a desapropriação da Fazenda Macaxeira. Os manifestantes foram surpreendidos por um ônibus cheio de policiais que para liberar a estrada ocupada pela marcha do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, começaram a atirar contra os manifestantes. 

“Lembro bem quando consegui sair da margem do asfalto e chegar até uma casa onde estavam muitos companheiros, já tinha um amigo de infância também adolescente com um tiro no olho e tinha uma repórter lá. Quando eu vi que soldados estavam se aproximando, eu corri para o mato e não consegui avisar minha mãe e os meus irmãos. A partir do momento que a notícia saiu do perímetro da curva do S, a chacina ganhou uma dimensão internacional”, relata Batista do Nascimento da Silva, que tinha 15 anos à época do Massacre de Eldorado dos Carajás e participava da marcha.

Ponto a ponto: conheça o plano de Reforma Agrária Popular defendido pelo MST

O sobrevivente do massacre é hoje militante sem-terra, e diz que a primeira imagem que tem na memória deste dia é a morte dos sonhos daqueles que estavam ali. Batista continua na luta para dar continuidade aos que foram assassinados.

“Eram centenas de mulheres, crianças e homens que tinham um sonho em comum, que era ter a posse de terra para trabalhar, produzir, ter sustento e dignidade. E tu perceber que o Estado na condição de quem tem o dever de garantir essa acessibilidade promovendo uma chacina, ceifando vidas interrompendo esses sonhos de homens e mulheres que ali estavam naquele dia”, diz Silva, sobrevivente do massacre. Dos 155 policiais envolvidos na operação, apenas dois foram condenados. 

Batista conversou com o Brasil de Fato enquanto estava à caminho da chamada "Curva do S", para as atividades que marcam, no domingo (17), os 26 anos do massacre. Na "Curva do s" as famílias sobreviventes que hoje vivem no assentamento 17 de abril participam de um ato ecumênico no exato local da brutalidade, na BR-155. Dezenove castanheiras foram plantadas em homenagem às vítimas da chacina.

::Testemunha da chacina de Pau D’arco relatou ameaças da polícia antes de ser morto::

Imagem na fotografia

Alguns fragmentos dessa memória de Batista estão eternizados pelas lentes do fotógrafo João Roberto Ripper, já conhecido na época pela sua atuação nos direitos humanos. Ele foi ao velório dos sem terra e registrou o desalento das famílias sobreviventes. As fotos mais famosas são dele e do colega Sebastião Salgado. Ripper ressalta que assim que soube do massacre pediu dinheiro emprestado e foi até o Pará, para denunciar com a fotografia a violência da polícia contra os sem terra. 

“Foi muito difícil para mim. Lá tinha vários fotógrafos, Salgado, eu, e o Nelson Mancini que foi chamado pela Comissão de Direitos Humanos para refazer a autópsia, porque a autópsia que tinha sido feita antes foi toda maquiada. Fiz as fotos de todos os corpos. E aquilo foi muito doloroso, me emocionei. Naquele momento entendi, porque alguns estavam machucados, e me explicaram que é como se você fosse baleado, já estava para morrer, mas vai lá e ratifica a morte”, lembra o fotógrafo. 


Ação da PM do Pará matou 21 sem terra; dos 155 policiais envolvidos só dois oficiais foram condenados / João Roberto Ripper

A violência no campo

Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 1985 a 2020, 1.973 trabalhadores rurais foram assassinados em 1.496 disputas de terra. Deste total, apenas 122 casos foram julgados, o que corresponde a 6%, resultando na condenação de 35 mandantes e 105 executores dos crimes. Para ele, Carajás não foi um fato isolado, outros massacres continuam acontecendo.  

Leia também: Como o MST se propõe a enfrentar o agronegócio plantando soja orgânica

Denúncias e anúncios

Com quase 50 anos de fotografia, Ripper tem uma trajetória marcada por registros de violências e desigualdades sociais, mas também voltada para a beleza das histórias de pessoas como ele mesmo nomeia “esquecidas” nos interiores do país. 

“Para mim marcou muito, foi o início de uma coisa que infelizmente hoje a gente vive com uma intensidade brutal no país, que tem como política a necropolítica, que é ‘vamos matar aqueles que não interessam a nós’, nós, os poderosos, os ricos. Então esse massacre acaba sendo um marco que se espalha por outros massacres, como o que acontece no Rio de Janeiro contra os negros”. 

::Radiodocumentário relembra 21 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás::

Ripper mergulhou no trabalho escravo Brasil afora, testemunhou indígenas serem expulsos de suas terras, e outras situações de violência. Ele se afastou das redes sociais, pois começou a ser ameaçado pela publicação de trabalhos, como foi o caso de Carajás. Ele recebeu mensagens de ódio, ataques às vítimas de uma violência brutal e a criminalização do massacre. 


Com um olhar poético e investigativo o fotógrafo João Roberto Ripper registrou diferentes violações de direitos humanos e foi reconhecido por diversos prêmios nacionais e internacionais / Ana Mendes

Democratização na fotografia

Para ele, o fotógrafo é testemunha dos fatos e deve usar a fotografia para denunciar as violações. Ressalta que se a grande mídia não está fazendo o seu papel e apenas servindo ao poder, ele defende que é preciso formar comunicadores e fotógrafos populares. 


As apanhadoras de flores sempre-vivas em Minas Gerais / João Roberto Ripper

“A fotografia brasileira é predominantemente masculina, é o homem, se exclui mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+... e assim foi na história do mundo. Então hoje eu luto para trazer todas essas pessoas.  Por exemplo, formamos fotógrafos na favela em projeto na Maré, em mais de 60 pessoas hoje que vivem da fotografia e estão fazendo trabalhos de denúncia de direitos humanos. Mas temos que formar também em todos os cantos fotógrafos populares”.

Ripper já realizou diversas exposições e foi reconhecido pelo seu trabalho com diversos prêmios. Ele comenta que tirar fotos do celular é uma técnica que pode ser aprimorada e levada a sério. “O celular é um elemento de democratização da fotografia, se a gente colocar cada vez mais pessoas trocando experiências e técnicas. É claro, continuar fotografando com as câmeras, mas entender que dá para fazer muita coisa importante pelo celular”. 

Edição: Daniel Lamir