Distrito Federal

População negra

Chargista visita escola militarizada que sofreu censura em mural sobre racismo

Trabalho de estudantes para o Dia da Consciência Negra recebeu pressão de militares para ser retirado

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Carlos Latuff visita escola cívico-militar no DF para prestar solidariedade a professores e alunos que foram censurados ao reproduzirem uma charge do artista - Reprodução/Twitter

O chargista Carlos Latuff visitou nesta terça-feira (30) o Centro Educacional (CED) 01, na Estrutural, uma das regiões administrativas mais pobres de Brasília, para prestar solidariedade a alunos e professores que vêm sofrendo pressão de militares após uma exposição relacionada ao Dia da Consciência Negra.

A unidade de ensino é uma das 10 escolas públicas do Distrito Federal que fazem parte do programa escolas cívico-militares do governo federal.

De acordo com informações da vice-diretora do colégio, Luciana Pain, o trabalho foi exposto no dia 20 novembro, Dia da Consciência Negra, com uma série de atividades realizadas na escola, como desfiles de moda afro e oficinas de beleza negra. Até mesmo uma aluna do Quênia esteve presente para trançar o cabelo das estudantes. O trabalho incluiu cartazes com charges e informações que abordaram o racismo estrutural e a violência policial no país.

Logo na semana seguinte, na segunda-feira (22), Luciana Pain recebeu um pedido do diretor disciplinar da escola, tenente Araújo, da Polícia Militar do DF, para que os murais com charges que faziam críticas a atuação da PM fossem retirados. Entre essas charges, estavam obras de Carlos Latuff que ressaltam a ação truculenta de policiais com populações negras periféricas.

No mesmo dia, imagens das charges foram divulgadas por uma pessoa que se autointitula representante do movimento conservador no DF.    

"Houve uma tentativa de se retirar esse material exatamente por conta da natureza das charges, que tratam sobre um tema grave que precisa ser tratado no Brasil: violência policial e racismo. E, por isso, professores, alunos, a própria direção sofrendo pressões para que esse trabalho fosse removido e não se dobraram às pressões", afirmou Latuff em um vídeo gravado diretamente da escola. "O Brasil é um país racista, o Estado mata sim preto e pobre no Brasil. E quando se tem essa oportunidade de um trabalho de escola denunciar isso, é muito importante", acrescentou.

"Na ocasião, eu falei pro tenente para aproveitarmos o assunto e fazermos disso um momento de aprendizagem com alunos, mas sem censura", explicou a vice-diretora.

O caso da Estrutural, lembrou Latuff, remonta à uma outra censura ocorrida em 2019, na Câmara dos Deputados, quando uma peça do cartunista, que estava exposta no Congresso Nacional, foi quebrada por um parlamentar do PSL. A obra também fazia referência ao genocídio da população negra por agentes policiais. 

"O Estado mata através do seu braço armado, que são as polícias. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou direta. Se você pegar as estatísticas, vai ver que a Polícia no Brasil é a que mais mata, especialmente a população negra e da periferia. É preciso tratar dessa questão, você não pode jogar o racismo e a violência policial para debaixo do tapete", argumenta Latuff.  

Intimidação

De forma arbitrária e autoritária, na última quarta-feira (24), o deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) foi à escola para tentar remover os cartazes. Ele também discursou na tribuna da Câmara para pregar contra a exposição.

Em uma postagem na sua conta de Instagram, afirmou que este seria um exemplo prático sobre como estudantes "sofrem interferência ideológicas e doutrinação panfletária" nas escolas. "Estão retratando policiais em atitudes criminosas, totalmente incompatíveis coma realidade das ruas". O parlamentar chegou a ameaçar a vice-diretora de perda do cargo.

"Para eles, o grande problema foi não terem sido consultados. O regimento interna é muito claro sobre a autonomia pedagógica de professores. E tudo foi feito dentro dos parâmetros da Base Nacional Comum Curricular. Eles não foram consultados e nem serão quando se tratar de aspectos de conteúdo pedagógico", explicou a vice-diretora.

O modelo cívico-militar implantado no governo Bolsonaro é diferente do modelo das escolas militares mantidas pelas Forças Armadas. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), as secretarias estaduais de Educação continuam responsáveis pelos currículos escolares, que é o mesmo das escolas civis. Os militares, que podem ser integrantes da Polícia Militar ou das Forças Armadas, atuam como monitores na gestão educacional, estabelecendo normas de convivência e aplicando medidas disciplinares.

A Secretaria de Educação informou, em nota, que considera "preocupante o fato de um estudante ter a imagem das Forças de Segurança associada ao racismo ou ao nazismo e acha importante que o tema seja debatido durante o processo pedagógico".

Uma das charges tinha um símbolo nazista exposto metaforicamente na braçadeira de um policial que abordava pessoas negras. Após um debate com os alunos, esse trecho da charge foi coberto. 

Já a Secretaria de Segurança Pública do DF respondeu que a realidade da Polícia Militar do Distrito Federal é diferente em relação à violência racista. 

Respaldo da comunidade

Apesar da polêmica, Luciana Pain afirma que o modelo de escola cívico-militar no CED 01 da Estrutural melhorou o ambiente de aprendizagem. "Temos 1.600 alunos aqui no CED. Na pandemia, os militares nos ajudaram a ir na casa de alunos que estavam sem pegar atividades remotas para entender o que estava acontecendo. Antes, ocorriam muitas brigas no meio do pátio e nós professores não conseguíamos controlar. Hoje, pelo menos, a gente consegue ter mais paz para trabalhar. Ainda temos muitos problemas, mas o ambiente melhorou", reconhece. 

Segundo a vice-diretora, a comunidade escolar tem se mobilizado em sua defesa. Na última quinta-feira (25), houve uma manifestação de alunos e pais. No Distrito Federal, diretores de escolas públicas são eleitos diretamente pela comunidade, o que garante um respaldo e autonomia para o desenvolvimento dos trabalhos, além de estreitar as relações com as famílias.

Após a visita de Latuff, uma nova manifestação deve ocorrer essa semana, na quinta-feira (2).

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) divulgou nota pública, na última sexta-feira (26), em defesa de Luciana Pain, dos professores e dos estudantes do CED 01.

"As referências feitas pelos estudantes em sua exposição no que se refere à atuação da Polícia é reflexo direto de um país que conta com os maiores índices de violência policial do mundo. Em uma escola de uma das regiões mais pobres da cidade, que conta com uma maioria de estudantes negros/as, cabe à PMDF desconstruir, a partir de ações concretas, essa imagem pública negativa da qual ela também é vítima. Sabemos que a polícia brasileira é a que mais mata no mundo, mas também é a que mais morre".

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Edição: Flávia Quirino