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Uma página em branco

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Na prática, ser uma página em branco é anular todas as características que definem a identidade de cada um. - Foto: Matheus Alves
Personagens têm histórias e a experiência do artista deve ser estofo para eles.

No teatro, a expressão “página em branco” se refere aos exercícios de preparação corporal para que atores e atrizes possam disponibilizar seus corpos em analogia a uma folha de papel em branco, pronta para serem escritas novas histórias.

Na prática, ser uma página em branco é anular todas as características que definem a identidade de cada um, num processo violento de despersonalização.

É desconsiderar o sujeito como indivíduo. É apagar os trejeitos, principalmente quando se é gay afeminado. É silenciar os sotaques, sobretudo atores e atrizes nordestinos. 

Ao dizer “você vai querer sempre fazer papel de porteiro nordestino?” para convencer um ator/atriz que é necessário neutralizar seu sotaque, um diretor ou diretora está primeiro afirmando, arraigado de preconceito, que a população de mais de 53 milhões de pessoas nascidas no Nordeste só tem essa opção como profissão na vida real e por isso a arte deve imitá-la. 

Segundo, é perpetuar o modus operandi hegemônico de estabelecer que sua origem, sua cor e sua sexualidade determinam sua carreira profissional, logo seu papel no teatro, no cinema e na novela. E numa última análise, desvalorizar o serviço de porteiro, estabelecendo categorias melhores que as outras e esquecendo que somos todos classe operária, trabalhadora.

Ledo engano achar que o exercício de uma página em branco, é preparar o ator/atriz para poder interpretar qualquer personagem, sem vícios. Personagens têm histórias e a experiência do artista deve ser estofo para eles, porque é rico, é plural, é real! 

Para Augusto Boal (1931-2009), teatrólogo brasileiro, os exercícios de preparação corporal servem para desconstruir as estruturas musculares dos participantes, mas no sentido de conhecê-las e fazer análises, sem que desapareçam, numa perspectiva de torná-las conscientes, e as usar como, quando e onde quiserem. 

Na nossa companhia, temos um ator nordestino que durante sua formação de teatro, acabou tendo que modular sua pronúncia até perder quase que totalmente o sotaque. Mesmo na língua portuguesa não existindo o som de “ch” depois das consoantes “d” e “t”, acompanhadas das vogais “a”, “e” e “i”, ele acabou incorporando o “dchi” ou o “tche” no seu repertório. 

O curioso é que a expressão “página em branco”, mesmo sendo uma técnica para alcançar um corpo neutro, zerado, acaba se parecendo com um tipo muito específico, apontado inclusive pelo próprio nome: um branco, de classe média, de uma determinada região do país e hétero.

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

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Edição: Márcia Silva