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Artigo | O debate sobre o Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF

Cercado de linguagem cifrada, acessível só aos “iniciados”, discussão ignora populações dos territórios populares

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Atualização do Plano Diretor - que vai indicar “quem vai ficar com o quê da cidade” - é objeto de disputa acirrada de interesses - Foto: Agência Brasília

Está em andamento um debate cercado de visões polêmicas sobre os rumos do planejamento territorial e urbano do Distrito Federal.

Originado pela transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, a nova cidade construída no Cerrado a partir do projeto urbanístico de Lucio Costa, o Distrito Federal constitui hoje a terceira área metropolitana brasileira com mais de 3 milhões de habitantes.

E possui problemas que assolam as grandes cidades brasileiras como moradias precárias e altos preços dos imóveis e dos alugueis. Sobretudo, para a maioria da população, que mora a longas distancias das oportunidades de trabalho e renda passando muitas horas por dia dependendo de transporte coletivo que, mesmo com subsídios públicos, é dominado por poucas empresas concessionárias com tarifas elevadas e baixa integração.

Outra marca é o fosso de desigualdade na qualidade da infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos, entre uma área central cada vez mais elitizada e as cidades satélites e a periferia metropolitana das cidades goianas do chamado Entorno, com população dependente da economia do DF. Esse quadro urbano promove um grau de segregação social bem expresso na frase “diga-me onde tu moras e te direi quem és”.

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A cidade não cresce nos ritmos acelerados dos anos 80 e 90, mas não para de crescer, e os quase dois anos de pandemia acentuaram o desemprego e a miséria. Basta ver o incremento visível de população de rua, dos pedintes a cada semáforo e das famílias inteiras nas portas de supermercados esperando doações de comida.

Como o planejamento territorial e urbano pode ajudar a enfrentar esses problemas e promover uma cidade menos injusta e desigual, e mais sustentável para toda a população, especialmente para a ampla maioria dos excluídos do Direito à Cidade? 

Conforme a Constituição Federal, o Plano Diretor é o instrumento para promover o ordenamento das áreas urbanas e rurais de maneira a fazer cumprir a função social da propriedade e da Cidade. Com isso, orientando as políticas de habitação, transportes e mobilidade urbana, saneamento ambiental, educação, saúde e segurança, dentre outras.

Para tanto, é uma lei complementar, acima das leis ordinárias, orientando o orçamento, os investimentos públicos e privados, com o planejamento do uso racional e sustentável da terra e dos recursos naturais, notadamente da água, esse bem público coletivo cada vez mais escasso e ameaçado nesse território e planeta cada vez mais seco e aquecido.

Esses são desafios colocados no debate do Plano Diretor do DF na perspectiva de termos mais cidades e menos satélites, estendendo o padrão de urbanização privilegiado, tradicionalmente para poucos, na direção de todos espaços urbanos e segmentos sociais dessa Metrópole. Especialmente das áreas mais periféricas, geralmente irregulares, que restam como alternativa precarizada e precarizadora dessa maioria da população que é brasiliense, independente do lugar onde mora no DF metropolitano.

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Por essas razões, os territórios da cidade, e a atualização de seu Plano Diretor - que vai indicar “quem vai ficar com o quê da cidade” -, são objeto de disputa acirrada de interesses. Tradicionalmente dominado por especialistas técnicos, proprietários de terras e agentes do mercado imobiliário, o debate é cercado de linguagem cifrada acessível só aos iniciados, obscurecendo interesses e contradições, inacessível para as populações dos territórios populares, justamente os que sofrem na pele as marcas da exclusão de direitos.

Daí a garantia, conquistada na Lei do Estatuto da Cidade, sancionada em 2001, que prevê processos democráticos e participativos na elaboração dessa Lei. Que ficam obviamente limitados e mais restritivos ainda em tempos pandêmicos.

Como mobilizar amplas discussões sobre os rumos da cidade envolvendo todos segmentos sociais, de todas partes do DF, para discutir soluções para os problemas sentidos pela maioria nessas condições limitadas e restritas? Por que a pressa, ainda no contexto de crise sanitária?

Esse questionamento não é exclusivo do debate do Plano do Distrito Federal. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Goiânia, e até na Cidade de Goiás, no interior do estado vizinho, iniciativas de revisão dos seus planos diretores estão na pauta fazendo com que entidades técnicas, acadêmicas, coletivos, associações de moradores, movimentos sociais e populares não aceitem olhar passivamente a passagem das chamadas “boiadas urbanísticas”.

Ou seja, o atravessamento de interesses particulares que somente olham para a cidade como mercadoria, lugar para negócios, rendas e lucros. E não como bem comum onde cada pedaço de chão privado ou público, urbano ou rural, deve cumprir a função social da cidade e da propriedade o que significa a prevalência dos interesses coletivos sobre o interesse particular, como prescreve o Estatuto da Cidade.

Essa pauta promete grandes mobilizações e embates em 2022 que, combinados com as eleições de deputados, senadores, governadores e presidente, acenam para um ano de debates politizados que esperamos, em melhores condições sanitárias, possam ser presenciais proporcionando uma festa de democracia direta e participativa.

Tragicamente, a postura genocida foi responsável por tirar a vida de mais de 600 mil pessoas; contudo, como diz o milenar ditado romano, “quem viver verá” e, além de sobreviver à pandemia, honrará essas vidas perdidas ajudando a construir não um novo normal, mas cidades melhores e mais justas no DF e no Brasil.   

*Benny Schvarsberg, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB)

**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

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Edição: Flávia Quirino