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Coluna

Quando voltaremos à normalidade?

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A recomendação de isolamento social no Brasil se deu 1888, desde então mais da metade da população está isolada socialmente. - Foto: Governo do Estado do Mato Grosso do Sul
No Brasil, o vírus competiu com o feminicídio, genocídio, etnocídio, racismo e com a necropolítica

Estamos há 1 ano e 7 meses vivendo em pandemia. Muito se fala sobre a volta à normalidade, há também a prospecção de um “novo normal”. O que as pessoas consideram normal? O que será esse novo normal? Melhor, vivíamos uma normalidade? Se sim, como chegamos, construímos a atual realidade?

Seria ingênuo pensar que se vivêssemos em normalidade não estaríamos mergulhados em um luto mundial, penso que não. Compreender que antes da chegada do vírus da COVID-19 nós, humanidade, nunca alcançamos o normal - considero normal a dinâmica da natureza seus ciclos, coletividade, relações de trocas, diversidades.

Nós humanos nos perdemos antes do uso das máscaras, álcool gel, isolamento social, velórios sem corpos. Antes da pandemia, máscaras desfilavam nos espaços de poder e representatividade semeando sexismo, racismo, machismo e lgbtfobia.

A recomendação de isolamento social no Brasil se deu 1888, desde então mais da metade da população está isolada socialmente.

Lutos diários sempre foram uma realidade nas periferias (não diminuo jamais a gravidade de termos quase 600 mil famílias em lutos em decorrência da covid-19). Pontuo apenas, que tão grave quanto, o racismo opera em nossas terras brasileiras desde da chegada dos portugueses e espanhóis, foi e é, responsável por dizimar muitas etnias. Na atualidade, seguem perseguindo e matando os povos indígenas, os donos desse chão, isso te parece normal?

É inquestionável que em um contexto de inclusão cidadã a todes, teríamos erguido menos cruzes, comprado menos caixões. Em uma sociedade normal, todos teriam casa para ficar, água e sabão para lavar as mãos, todos seriam cuidados em seus espaços de trabalho, poderiam transitar menos nas ruas.

Mas o que esperar do grupo majoritário no país que recebeu por herança de uma princesa as ruas para tentar a sorte e sobreviver? Como pedir cuidados sanitários quando o país prioriza a compra de tratores para desmatar do que preservar seus rios e garantir água potável a toda população? Impedir aglomeração de quem descende das grandes aglomerações nos porões de navios negreiros sendo que à isso nenhuma reparação se deu até agora. É possível refletir sobre isso e aceitar como normal?

Somos um dos maiores produtores de alimentos, muitos de nós passávamos fome antes da pandemia; temos inúmeras bacias hidrográficas ricas e abundantes, entre nós havia quem não pudesse saciar sua sede; as mãos que alicerçam as grandes colheitas, produções, construções foram mãos negras, ainda assim a pele preta sempre esteve como alvo das ditas “balas perdidas” mãos negras só aparecem quando algemadas. É um país indígena, mas eles são deslegitimados, não os vemos nos espaços de poder e representatividade, e eles são os donos da casa, isso não pode ser normal.

Havia e segue em vigência a forte narrativa de sermos uma sociedade cristã, guiada pelos princípios do Cristo, amor ao próximo como a ti mesmo. No entanto, o Brasil comprou a ideia de um Cristo capitalista europeu, ao contrário dos ensinamentos do Cristo, ele escolheu apedrejar Dandara dos Santos.

E se ele, o Cristo, esteve sempre em companhia e escuta às mulheres, os cristãos por aqui optam por silenciá-las, perseguir, constranger, ameaçar, alvejá-las de morte.

O corona vírus em terras brasileiras competiu com o feminicídio, genocídio, etnocídio, racismo e com forças políticas se somou a necropolítica. Se tratando de uma sociedade em construção urge o fim da naturalização de violências e violações tão estruturantes.

Brasil 2021 e os brasileiros acreditam ter vivenciado tempos normais. Uma aposta seletiva sobre que país ouvir, dar importância. Sendo assim é possível que para alguns poucos grupos essa reflexão não faça o menor sentido, porém qualquer pessoa preta, indígena, cigana, mulher, LGBTQI+ sentia a dita normalidade da branquitude, patriarcado, heteronormativo como algo mortal que por vezes precisou usar máscaras para esconder as lágrimas, precisou se isolar e para isso não há vacina.

Não existe ainda consciência de que é preciso cuidar da vida, da saúde física e mental; quiçá o novo normal se trate disso: consciência de que todas as vidas valem, valem muito, independente da raça, gênero, credo, orientação sexual, idade e do CEP onde reside, que as condições para viver sejam ofertadas a todes.

Que seja normal o respeito às diferentes humanidades, as manifestações de suas culturas e sobretudo que as heranças verdadeiras se materializem, povos indígenas com suas terras demarcadas, população negra conhecendo sua verdadeira história, vivendo longe da mira do Estado, mulheres em segurança, população LGTQIA+ livres para seus afetos e para afetar.

Que seja normal o acesso à alimentação, água, moradia, transporte, educação, internet. Que seja normal o uso do cocar, turbantes no Congresso Nacional. Sem construirmos esses espaços de integração das nossas identidades, diversidades, humanidades não viveremos o normal.

O movimento de “retomada” evidencia algumas distrações que podem ser taxadas também como irresponsabilidade social, a ideia de que as coisas devem voltar ao que era desconsiderado completamente, a percepção do outro, do meio social, político, econômico. As campanhas de incentivos, tentam dizer a população que o nosso desafio é pandemia; sim é algo assustador que por inúmeras vezes despertou o desespero, sentimento de impotência em todes nós. Isso é fato!

Mas também é verdade que ela escancarou as desigualdades raciais, sociais, de gênero. Não há como não perceber o descaso em que sobrevive a população empobrecida.

Esse tempo sinaliza que é preciso integrar saberes, percepções, dores, lutos, fortalecer lutas que visam o bem viver de todes. Investimentos reais à saúde da população em caráter de urgência, significa investir em boa alimentação, apoio à agricultura familiar, preservação das nascentes, florestas, comunidade tradicionais, saneamento básico nas periferias, acesso a iluminação, escolas, mobilidade urbana, geração de emprego, inclusão econômica. A saúde é um bem de depende de tantas outras garantias, que pode começar em hortas, por exemplo.

Se temos pressa em voltar a nos encontrar, aglomerar voltemos com a consciência de que temos muito a fazer em memória dos que foram, em acolhida aos que nasceram nesses últimos dois anos. Com esperança Freiriana, esperançosos mais se movendo, construindo espaço de afirmação à normalidade das diferenças, abdicando de discursos e práticas de ódio, sendo zeloso nas escolhas políticas.

Não pode representar o Brasil quem naturaliza o racismo estrutural, ambiental, quem estimula violências e segregação. Não é sonho, já sonharam por nós, nossa Constituição nos aponta passos para um Brasil normal, façamos valer!

Ubuntu!

*Dyarley Viana é mulher negra, educadora popular, pedagoga e ex-catadora.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino