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Coluna

Uma carta para Paulo Freire

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Paulo Freire - Pintura em Aquarela da educadora Pilar Acosta, gentilmente cedida para esta coluna. - Pilar Acosta
Como correr atrás para levar de volta para a escola centenas, milhares de jovens?

A atriz acorda cedo, toma um suco, calça um tênis e sai para caminhar. Ela precisa escrever um texto para a coluna quinzenal no Brasil de Fato DF da companhia de teatro da qual faz parte. Exercícios físicos aguçam sua criatividade. Ela sabe que durante a caminhada surgiria um bom tema para a escrita.

E surgiu! É o mês do centenário de Paulo Freire. Ficaria bacana um texto em formato de carta para o mestre contando um pouco sobre a situação da educação nessa realidade pandêmica e destacando a necessidade de praticarmos cada vez mais os ensinamentos freirianos. Uma espécie de desabafo com pacto de luta. Porque o momento pede reflexão e ação. 

Ela lembra de uma frase do educador que a marcou muito: 

“A melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível de ser feita hoje é fazendo hoje aquilo que pode ser feito.” 

Animada, para na sombra de uma árvore e liga para um amigo do grupo relatando a ideia e pedindo ajuda no desenvolvimento da escrita. Ele topa. Ela abre rapidamente o bloco de notas no celular e anota alguns pontos centrais. Faz uma pesquisa rápida na internet: 

Evasão escolar + pandemia + DF

Logo no primeiro resultado sai uma matéria produzida por um jornal local publicada horas antes. Ela faz uma leitura rápida, que alimenta a certeza que a carta para Paulo Freire dará um bom texto para a coluna. É preciso falar sobre isso. Os efeitos da pandemia são trágicos, principalmente para os estudantes de escolas públicas. Mais uma vez a corda arrebenta para o lado mais fraco. 

A matéria apresenta entrevistas com conselheiros e conselheiras tutelares que relatam o aumento significativo de notificações escolares de evasões ou faltas excessivas. Os motivos que as famílias apresentam são em praticamente cem por cento dos casos ligados à vulnerabilidade social agravada pela pandemia.

Falta de dinheiro para pagar internet, uso de um mesmo aparelho por dois, três, quatro estudantes, dificuldade para buscar o material impresso na escola, adolescentes sem tempo para as atividades porque estão trabalhando para ajudar no orçamento familiar. Em muitos casos as famílias nem foram encontradas porque muitas mudaram de endereço buscando aluguéis mais baratos. 

Ela salva o link da matéria e volta a andar caminhando de volta para casa. Frases vão surgindo na mente. Passa no mercado, compra pão quentinho e planeja na fila do caixa o restante da manhã: ao chegar da caminhada tomar um banho, comer e sentar no computador para escrever o texto.

Já no seu bloco, em frente à portaria, ela é abordada por um jovem com uma faca que diz: Isso é um assalto. Ele estava nitidamente tenso. Desconfortável. Com medo? Ela entrega o celular. Abre a porta e sobe apressadamente as escadas. Entra em casa com as pernas bambas. Toma uma água e lembra da imagem do rapaz. Um menino negro que aparentava 17, 18 anos. A idade do filho que no momento se preparava para ir para a escola.

Muitas coisas passam pela cabeça dela, mas o pensamento dominante é: 

De um celular a gente corre atrás e compra outro, mas como correr atrás para levar de volta para a escola centenas, milhares de jovens?

O texto que seria uma carta para Paulo Freire se transforma num pedido para mantermos vivos os ensinamentos do mestre que dizia: 

Não é no silêncio que as pessoas se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Mudar é difícil, mas é possível.


*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

Edição: Flávia Quirino