Distrito Federal

Coluna

As histórias que não nos contaram

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Benedita Cipriano Gomes - Prefeitura Municipal de Pirenópolis
A memória das lutas passadas nos encoraja para as lutas presentes.

Quando você pensa em nomes revolucionários que te inspiram, quantos são femininos?

Montamos o espetáculo Bendita Dica em 2016, que conta um pouco da incrível história de Benedita Cipriano Gomes, a Santa Dica, uma poderosa líder comunitária que criou em Lagolândia, na região de Pirenópolis GO, entre os anos de 1920 e 1930, uma grande comunidade que dividia a terra por igual e tinha como princípios a produção coletiva e a solidariedade. 

A República dos Anjos chegou a ter 600 famílias e incomodou bastante as estruturas conservadoras regionais e nacionais. 

Os coronéis da região ficaram revoltados com a partida dos trabalhadores e das trabalhadoras para as terras da Dica em busca de uma vida melhor. Era a terra prometida, o paraíso, a alternativa para fugir da exploração.

Dica foi uma grande líder religiosa e política. Era curandeira, conselheira, milagreira e comandou um exército formado por 400 homens, que tinha como objetivo defender a República dos Anjos. 

O exército ficou conhecido como “pés com palha, pés sem palha”. 

A maioria dos combatentes eram analfabetos e confundiam os comandos de esquerda e direita. Dica, então, pediu para que cada um amarrasse uma palha no pé esquerdo e para organizar a tropa passou a gritar: “pé com palha, pé sem palha”. 

Vista como ameaça para os desmandos dos políticos locais, Dica foi proibida de fazer parte da festa do Divino de Pirenópolis.  

A líder passou a realizar a festa em Lagolândia, mas com uma diferença: lá seria tudo gratuito. A celebração conhecida também como a Festa do Doce acontece até hoje na cidade em meados de julho, com distribuição gratuita de centenas de quilos de doces diversos. 

Dica foi presa, ridicularizada e duramente perseguida. Por sobrevivência circulou por diversos lugares, morou em estados diferentes, mas cumprindo a promessa que fez a si mesma, viveu os últimos dias em Lagolândia, onde se encontra seu corpo sepultado na praça central debaixo da Gameleira, que foi sombra para inúmeras conversas entre a líder e o povo. 

Junto com a árvore sua história permanece viva. 


Túmulo da Dica em Lagolândia (GO) / Matheus Alves

Desde a estreia de Bendita Dica, foram mais de 100 apresentações em diversos espaços no Distrito Federal e Entorno, Goiás, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Sul, São Paulo e Maranhão. 

Passamos por escolas, assentamentos, acampamentos, teatros, praças, parques, unidades do sistema socioeducativo, feiras, shopping center, estações de metrô. Em todos esses lugares várias pessoas vieram até nós para dizer que nunca tinham ouvido nem o nome Benedita Cipriano Gomes. 

Imaginem quantas Dicas existem nesse imenso Brasil? Certamente, centenas, milhares. 

E imaginem se nos tivessem contado as histórias dessas Dicas? 

A cada espetáculo apresentado sentimos a potência revolucionária do narrar uma trajetória feminina. Por diversas vezes escutamos: “A nossa Dica é a Maria. A nossa Dica é a Josefa. A nossa Dica é a Raimunda.”

 As pessoas encantadas com os feitos da Santa Dica identificam as lutadoras da sua comunidade, da sua família reconhecendo a importância histórica das mulheres na luta pela vida dentro de casa, nas ruas, em todos os espaços.

 Além desse reencontro político com as mulheres em volta, as pessoas ficam com desejo de fazer parecido, de experimentar esse mundo em que tudo é dividido igualmente. 

A memória das lutas passadas nos encoraja para as lutas presentes. 

Saber que no sertão do Goiás há 100 anos atrás uma comunidade liderada por uma mulher rompeu as cercas para viver em regime de comunhão alimenta nossa utopia, que como bem diz Galeano, serve para que a gente continue caminhando. 

É preciso que a arte esteja vinculada com a vida, com a luta, sendo assim instrumento que nos permita sonhar a construção de outros mundos. Trazer para a cena histórias que não nos contaram é contribuir para a necessária reconstrução da nossa memória incluindo o que propositalmente foi silenciado. É político. É teatro. 

Vale lembrar que não precisa ser artista e fazer parte de uma companhia de teatro para contar histórias, elas fazem parte do nosso cotidiano. 

A vida da Dica e de outras guerreiras podem, por exemplo, ser histórias de ninar embalando o sono das nossas crianças. 

E você, conhece a história de uma guerreira muito especial que raramente ou nunca foi contada? 

Tem curiosidade em conhecer histórias dessas mulheres?

Já pesquisou sobre as heroínas do Brasil? 

Já contou as histórias que conhece?

Convidamos você, caro leitor, cara leitora, para que também pesquise e espalhe por aí as nossas histórias, que são as protagonizadas pelo povo. 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

Edição: Márcia Silva