Pernambuco

violência policial

“A formação pela qual passamos é uma lavagem cerebral”, diz ex-policial militar

Rosana Santiago é dirigente do Movimento dos Policiais Antifascistas de Pernambuco

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Abordagem aconteceu nas proximidades na Ponte Duarte Coelho, no Centro do Recife
Abordagem aconteceu nas proximidades na Ponte Duarte Coelho, no Centro do Recife - AgênciaJCMazella

Repercutiu em todo o país a ação desastrosa da Polícia Militar de Pernambuco, no último sábado (29), no Recife, quando usou bombas e balas de borracha contra manifestantes, deixando dois homens cegos de um dos olhos e muitas pessoas feridas. O governador Paulo Câmara (PSB) e sua vice Luciana Santos (PCdoB) prestaram solidariedade aos feridos, afirmaram que a ação não foi autorizada pelo governo e prometeram punição.

Até agora foram nove os afastados: quatro policiais envolvidos na agressão à vereadora Liana Cirne (PT), os dois policiais que cegaram os trabalhadores, o comandante da operação, o secretário de defesa social e o comandante da Polícia Militar de Pernambuco. Apenas este último, Vanildo Maranhão, teve seu nome divulgado. A ação em dissonância com o governo, seguido por publicações em redes sociais de grupos policiais legitimando a ação, ascenderam o alerta sobre uma possível atuação política ilegal e “bolsonarista” de grupos dentro da PM.

Para falar sobre o tema, o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou Rosana Santiago, dirigente do Movimento dos Policiais Antifascistas de Pernambuco. Ex-policial militar, hoje policial civil, jornalista e estudante de Direito, Santiago considera a ação policial do último sábado (29) algo que “envergonha a farda”. Na avaliação dela, as forças de segurança pública precisam de mudanças, entre as quais, a desmilitarização da polícia, cuja formação, segundo ela, “é uma lavagem cerebral com claros resquícios da ditadura militar”.

Brasil de Fato Pernambuco: Você estava presente na manifestação. Como você reagiu àquela ação da Polícia Militar? Qual a sua avaliação como policial?

Rosana Santiago: Por pouco eu não estava naquele momento [do ataque da PM], porque tinha acabado de ir embora. Seria uma situação pior, porque provavelmente iríamos tentar dialogar com os policiais e talvez eles ‘fossem para cima’ da gente como foram para cima dos outros trabalhadores.

Apesar de eu ter ido embora, ficaram lá outras representações sindicais. Eles me ligaram dizendo que estavam no meio de um ‘buruçu’. Em nenhum momento a passeata deixou de ser ordeira. Então aquela ação da Polícia Militar foi totalmente covarde. E não tenho medo de usar esse adjetivo, porque não tem outro a ser usado. Absolutamente nada justifica o que a Polícia Militar fez naquele sábado. Eu fui policial militar por sete anos e hoje sou policial civil, tenho 11 anos de polícia ao todo, mas tive nojo daquela atitude. Envergonha a farda.

BdF: Mas em diversas páginas “não oficiais” da polícia nas redes sociais aquela ação foi legitimada.

R.S. : Eu tenho muito respeito pela Associação de Cabos e Soldados e pelo cabo Albérisson Carlos, mas eles soltaram uma nota totalmente mentirosa, inclusive utilizando imagens de outras manifestações que tiveram desordem, até imagens de outros estados. Usaram uma ‘fake news’ para justificar a atuação da Polícia.

O deputado [estadual] Joel da Harpa (PP) também, tem atuado de maneira oportunista, porque vai se candidatar novamente em 2022 e fica querendo aproveitar qualquer oportunidade – até contra uma criança estuprada que faria aborto legal. Ele e outros políticos que foram policiais agem de maneira oportunista querendo justificar o injustificável.

BdF PE: Pela sua experiência na polícia, você acredita na versão do Governo do Estado, de que aquela ação não teve permissão do Executivo? Como você avalia a resposta do governador Paulo Câmara?

R.S. : A gente sabe que o policial não aperta o gatilho sozinho. Mas afirmar que tenha havido ordem do governador, eu acredito que não, até pelas falas e atitudes deles após o acontecido. Mas para ter certeza sobre algo assim, só estando lá dentro da sala. Eu não estou defendendo o governo, mas o fato de eles terem prestado solidariedade no mesmo dia e estarem prestando auxílio – o que não vai trazer de volta a visão perdida e nem a dignidade ferida da vereadora Liana Cirne –, achei uma atitude positiva, mas também era o mínimo.


A brutal repressão policial à manifestação pacífica no Recife em 29/05 chocou o país / Agência JCMazella - SINTEPE

O Governo do Estado precisa ser contundente na resposta a esse tipo de ação. Afastar os policiais é o primeiro passo. A partir daí tem que abrir inquérito de verdade, apurar os fatos. Existe muita pressa pela punição, mas existe o princípio do contraditório, o direito à ampla defesa. Eu sei que não tem desculpa nenhuma o que eles fizeram, mas esses policiais precisam ser ouvidos. Precisa-se abrir inquérito, depois o procedimento administrativo disciplinar, tem todo um processo para se ouvir todas as partes e aplicar a medida necessária.

Mas eu acho que deveriam ser afastados os comandantes do Batalhão de Choque e da Rádiopatrulha, além do comandante da Polícia Militar de Pernambuco [este último teve seu afastamento informado minutos após a entrevista]. Os três comandos deveriam ser trocados. Essa seria uma resposta plausível à sociedade. Além disso, o Governo precisa combater as ‘fake news’ que as associações policiais estão divulgando.

BdF PE: Então faz sentido a tese de uma atuação política “bolsonarista” por dentro da Polícia? Por que as forças de segurança nutrem valores simpáticos à extrema direita?

R. S. : É um problema institucional. As academias de polícia, a formação pela qual passam os policiais, são valores muito diferentes daqueles de uma sociedade democrática. É quase uma “lavagem cerebral”, com claros resquícios da ditadura militar. E eu digo isso com propriedade, porque passei por essa formação. E isso eu digo abertamente para amigos policiais militares, apesar de hoje em dia eu manter contato com pouquíssimos policiais militares – principalmente a partir da polarização de 2018.

Só no Brasil a polícia é militar, preparados para serem máquinas de guerra. A polícia tem que ser cidadã e deve proteger o cidadão, como manda a Constituição de 1988, mas tem sido utilizada como máquina de guerra, força auxiliar e reserva do Exército. Isso não existe em país nenhum. Se esse governo quiser imitar países de “primeiro mundo”, precisa desmilitarizar as polícias. A polícia não tem que ser força auxiliar ou reserva do Exército e nem imitar o Exército em suas ações. O Exército é da fronteira para fora e a polícia é da fronteira para dentro.

Edição: Monyse Ravena